domingo, 30 de dezembro de 2007

PS acaba o ano no seu melhor


O PS acaba o ano no seu melhor. Mais encerramentos de urgências e SAPs com mais manifestações populares de repúdio. Mais negócios na banca, dividindo o acesso ao maior poder financeiro entre si e o PSD - mostrando quanto verdadeira é a velha frase de que "os governos são comissões de negócios da burguesia". O maior fracasso no programa Porta 65 que mostrou bem a vacuidade da propaganda governamental. Por isto, e muito mais, está bem Daniel Sampaio, na sua crónica de hoje no Público, quando apesar de reconhecer as suas simpatias pelo PS pergunta "de que se ri o governo?". Sócrates deve rir de satisfação, afinal ele conseguiu coisas que nem ao PSD lembravam.
Este ano que agora finda trouxe algumas lutas importantes. Grandes manifestações que influenciam a opinião pública. Esperemos que a luta se amplie e ganhe novas alianças contra a política neoliberal.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Livro Branco das Relações de Trabalho, a caminho do negro!


O Livro Branco (clique aqui para o obter) parece dar continuação ao relatório preliminar. Facilitação dos despedimentos, horários diários à vontade do patrão... mas vamos ler melhor.
No entanto, apenas algumas horas depois, as tácticas tornaram-se visíveis. A Comissão, que já teve cisões por manifesta parcialidade, nomeada pelo governo PS, abre espaço a políticas favorecedoras do patronato para - precisamente - o patronato exigir mais ainda. O governo fica na posição do procurador de consensos, apela ao diálogo - a arte da suprema hipocrisia - e assim se faz o caminho de mais uma viragem à direita.
Aos sindicatos compete informar muito bem os trabalhadores. Não é preciso gritar slogans, é preciso explicar. Basta começar a ler o Livro Branco para perceber que a mentira, a demagogia e a hábil linguagem para enganar a população e cair em graça.
E alguma vez a UGT teria que dizer alguma coisa com jeito. Foi o que fez o seu presidente ao dizer que as propostas do Livro Branco não correspondiam às propostas do PS aquando da apresentação do Código de Bagão Félix. Ou seja, como disse o próprio Bagão, aquando da apresentação do chamado relatório preliminar, as propostas agora enunciadas são inconcebíveis.
Ao que isto chegou. A flexiprecariedade é o monstro a abater!

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

O aumento do salário mínimo esconde a diminuição do médio


O acordo do salário mínimo, agora alcançado, sendo positivo é insuficiente, está muito afastado da nossa vizinha Espanha. Este aumento não é uma dávida de Sócrates, vem dos protestos dos trabalhadores e é sequela de anos e anos de políticas PSD/CDS/PS de atraso do salário mínimo para beneficiar a burguesia mais retrógrada. Recorde-se que 19% dos pobres, em Portugal, são trabalhadores que apesar de terem salário ele é tão baixo que não lhes permite sair de uma situação de pobreza social e económica.
Mas atenção, este acordo é uma capa que o governo usa para esconder o seu objectivo: a diminuição do salário médio – que é onde se situa a maioria dos trabalhadores.
O salário médio tem vindo continuadamente a diminuir fruto da subcontratação, da precariedade, do desemprego e da introdução das empresas de trabalho temporário.
Note-se que a redução da despesa pública com pessoal que o governo prevê fazer entre 2006 e 2007 é a maior desde 2000 nos doze países da zona euro, com excepção da Áustria… e é mesmo o país que mais corta a fundo nos salários do Estado.
Quanto à concertação social: esta está a servir como ferramenta de admoestação do trabalho e afastando a participação da classe. Está ainda a servir como ferramenta de toma de iniciativa política e até legislativa para retirar protagonismo à esquerda no parlamento. Além disso o governo tenta aparecer como moderado e consensual.
Depois de anos e anos de imposição de salário mínimo miserável este aumento pode ser, mediaticamente para o governo, ter “sol na eira e chuva no nabal”.

O fim do presépio


Nos SMSs circula esta mensagem
Este ano não vai haver presépio:
A vaca está louca e não se segura nas patas;
Os reis magos não podem vir porque os camelos estão no governo;
O burro está na escola a dar aulas de substituição;
As ovelhas andam hipnotizadas com as telenovelas;
Nossa Senhora e S. José foram meter os papéis para o rendimento mínimo;
A ASAE fechou o estábulo por falta de condições;
E o Tribunal de Menores ordenou a entrega do menino Jesus ao pai biológico.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Sócrates e a bajulação da imprensa


A atitude acrítica, e até bajuladora, com que a comunicação social tem brindado o primeiro-ministro no período da presidência europeia tem sido de bradar aos céus. Nos últimos tempos evidenciaram-se três episódios:
A conferência Europa-África destinava-se a revalidar um acordo introduzindo medidas mais gravosas para os países africanos no comércio com a Europa. Os países africanos fizeram um manguito e lá se foi o dito acordo. Para a mesma conferência a imprensa nacional alinhou nas novelas criadas em torno dos presidentes da Líbia e do Zimbabwe e abandonou o questionamento da fome, da guerra, da sobre-exploração das matérias primas pelas multinacionais, e nem sequer falou do tráfico de diamantes ou de armas que metem a Serra Leoa em guerra quase permanente. Da independência do Sara Ocidental nem uma palavra. Mas tudo foi vendido como um grande êxito.
A assinatura do Tratado Reformador transporta todo o património ideológico e político do extinto Tratado Constitucional. A linha neoliberal foi apagada, tudo se resumia a umas transferência de votos entre Estados, a um vice-presidente / ministro dos Negócios Estrangeiros e pouco mais. O secretismo foi adjectivado como uma sabedoria socrática. Esconder e enganar os povos é o máximo. Mais uma vez cantaram-se loas a Sócrates.
Agora foi a conferência de Bali. A montanha pariu um rato e as conquistas vêm em nota de rodapé. Mas agora não é só a imprensa a elogiar Sócrates. É ele mesmo que se auto-elogia. Sócrates disse que “o acordo sobre alterações climáticas alcançado sexta-feira na conferência de Bali (Indonésia) representou um triunfo da União Europeia e um bom momento da presidência portuguesa" da UE. Ou seja, um bom momento dele próprio, um triunfo dele próprio. Mais uma vez a imprensa ajuda à festa de iludir o povo.
Ao mesmo tempo começam a surgir artigos e posições dos opinion makers dizendo que Menezes está a ser um flop, não aparece, não é alternativa…
Isto tudo poderá significar que a burguesia decidiu manter Sócrates de pedra e cal? Pode ser que sim.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O macaco e o trabalho, sobre as contribuições de Engels


por MICHEL SILVA
Graduando de História na Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC)
Copiado da Revista Electrónica Urutágua

Resumo: Pretende-se aqui analisar a atualidade das contribuições de Engels em seu estudo sobre a transição do macaco ao homem. Para tanto, partiremos tanto de algumas das contribuições dos teóricos da evolução biológica no século XIX quanto das descobertas das ciências naturais no século XX.
Palavras-chave: Engels; evolução humana; dialética da natureza.
Abstract: The intention of this article is to analyze the contemporaneousness of Engels' contribution throughout his assay about monkey to human being transition. Hence, at beginning, some contributions of 19th century biologic evolution's philosophers, as well as 20th century natural science discoveries will be discussed.
Key-words: Engels; human evolution; nature dialectic.


O tema da transição do macaco ao homem suscitou as mais diferentes interpretações desde o momento em que foi posto. Em um primeiro momento, a “origem simiesca” do homem, hoje praticamente consensual, precisou provar suas hipóteses contra as crenças religiosas: “a maravilhosa ‘alma do homem’ seria, segundo se afirma, uma ‘substância’ completamente especial, e muitos são os que consideram como impossível que se tenha desenvolvido historicamente a partir da ‘alma símia’” (HAECKEL, 1989, p. 21). Passado o século XIX, coube aos teóricos da evolução sofrerem as mais diferentes críticas – grande parte em decorrência de interpretações errôneas de suas hipóteses –, embora, de forma geral, suas descobertas tenham sido não apenas comprovadas como aprofundadas. (Cf. GOULD, 1999)

Todavia, uma questão bastante óbvia parece ter sido deixada de lado quando se procura refletir sobre a evolução humana (que Darwin preferia chamar de “descendência com modificação”).[1] Falamos aqui da questão do trabalho e seu papel no processo de evolução. Tal importância do trabalho pode ser facilmente observada quando analisamos todo o processo pelo qual passou o homem no que se refere à utilização das mais diversas ferramentas ao longo de sua história. Para nós, contudo, não basta enumerar as diferentes ferramentas que os homens utilizaram ou descrever suas distintas relações com o meio ambiente. É preciso ir mais fundo nessa questão, afinal o trabalho cumpriu papel central no processo de transição do macaco ao homem.

O trabalho

Para chegar a uma definição de trabalho, é preciso procurar os elementos que definem, ao longo da trajetória humana sobre o planeta, as relações estabelecidas entre o homem e o ambiente onde vive. Ora, “o trabalho só começa quando uma determinada atividade altera os materiais naturais, modificando sua forma original” (COGGIOLA, 2002, p. 182). Ou seja, pode-se definir o trabalho como o processo que realiza a mediação entre o ambiente e o homem, quando este põe em ação as forças de que seu corpo está dotado – braços, pernas, cabeça, mãos –, transformando os elementos que encontra disponíveis na natureza em produtos, suprindo assim suas necessidades, não importando “se elas se originam do estômago ou da fantasia” (MARX, 1985, p. 45).

O trabalho assim concebido – ação deliberada sobre o meio, caracterizada e dirigida pela inteligência e pela capacidade de abstração e formulação de conceitos – nada tem a ver com as atividades que realizam outros animais, como as abelhas ou as formigas. O homem, ao atuar “sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza” (MARX, 1985, p. 149). O trabalho humano não é ação sobre o meio realizada de forma instintiva ou mecânica, mas processo complexo de aprendizagem, onde o homem não se limita a repetir ações e processos, como os outros animais, mas desenvolve técnicas e tecnologia que lhe são úteis. Ou seja, o homem se diferencia pois cria suas próprias ferramentas e sua ação não se limita a modificar os materiais que encontra disponíveis na natureza:

No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade. (MARX, 1985, p. 149-50).

Desde os primeiros tempos da humanidade houve uma divisão do trabalho, que no início se dava em função de características fisiológicas, como gênero, idade, força física etc. Mas, à medida que o trabalho se diversificava e se tornavam mais complexas a técnica e a tecnologia, essa primeira divisão do trabalho foi sendo superada pela divisão entre o trabalho material e o trabalho intelectual. Passava a haver, quanto à função imediata do indivíduo no meio social, um trabalho realizado pela mente e um trabalho realizado pelas mãos, sendo o primeiro entendido como afastado da prática humana, um produto da consciência humana e não de um órgão. Cada indivíduo ficou limitado a esferas profissionais particulares, exclusivas, não devendo sair delas, sendo unicamente caçador, operário, professor ou administrador. Com essa divisão, o trabalho e seus produtos passaram a ser, qualitativa e quantitativamente, distribuídos de forma desigual. (MARX; ENGELS, 1996, p. 44-8).

Engels e o macaco

Embora mais conhecido como um dos pioneiros do materialismo histórico, Engels dedicou parte de sua vida intelectual ao estudo das chamadas “ciências naturais”. Em um desses textos, Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem, publicado postumamente, Engels afirma que o trabalho é “condição básica e fundamental de toda a vida humana”, sendo possível afirmar que, em certo sentido, “o trabalho criou o próprio homem (ENGELS, s.d., p. 269). No contexto da época, tais afirmações eram bastante polêmicas, na medida em que o conjunto dos cientistas – e isso inclui os teóricos da evolução biológica – estavam marcados pela filosofia idealista, não considerando a importância do trabalho no processo evolutivo do homem.

Curiosamente, embora pouco conhecido – e nada estudado – esse pequeno e pretensioso ensaio de Engels, cujo objetivo era defender uma interpretação materialista da evolução humana – e não descrever um conjunto de conclusões acabadas e empiricamente comprovadas –, teve muitas de suas hipóteses corroboradas pelas descobertas das ciências biológicas ao longo do século XX. Nele, Engels apresenta as transformações históricas na relação entre a humanidade e o ambiente, sua intervenção sobre o meio e o processo de construção da sociedade. Engels procura demonstrar como o trabalho e a fabricação de diferentes instrumentos constituiu-se em fator fundamental na transição do macaco ao homem, num processo lento que inclui, entre outros elementos, o desenvolvimento de certas características físicas, como a mão, a fala e o próprio cérebro.

Para Engels, o fato de um grupo de macacos, há alguns milhões de anos, ter deixado de necessitar das mãos para caminhar, passando a adotar cada vez mais uma posição ereta e deixando as mãos livres para executar as mais variadas funções, foi o “passo decisivo para a transição do macaco em homem”. Usava-se antes as mãos apenas para tarefas como “recolher e sustentar alimentos (...) construir ninhos nas árvores (...) construir telhados entre os ramos (...) empunhar garrotes, com os quais se defendem se seus inimigos, ou para os bombardear com frutos e pedras” (ENGELS, s.d., p. 269-70). Tendo descido das árvores e fazendo uso da postura ereta, nossos ancestrais teriam aos poucos adaptado as mãos a novas tarefas. Embora nesse período de transição as funções que a mão cumpria fossem bastante simples, ela adquiriu ao longo do tempo mais destreza e habilidade, transmitindo de geração em geração essa flexibilidade adquirida.

Engels vê a mão como produto do trabalho. O longo processo decorrido até chegarmos à mão que temos hoje foi marcado pela adaptação a novas funções e “pela transmissão hereditária do aperfeiçoamento especial assim adquirido pelos ossos (...) pela aplicação sempre renovada dessas habilidades transmitidas a funções novas e cada vez mais complexas” (ENGELS, s.d., p. 270). Também, além da questão da hereditariedade, Engels dialoga com Darwin quando corrobora a lei de “correlação de crescimento”, segundo a qual “certas formas das diferentes partes dos seres orgânicos sempre estão ligadas a determinadas formas de outras partes, que aparentemente não tem nenhuma relação com a primeira” (ENGELS, s.d., p. 271). Ou seja, como não é parte isolado do organismo humano, a mão é beneficiada, de alguma forma, pelo que beneficia todo o corpo. “O aperfeiçoamento gradual da mão do homem e a adaptação concomitante dos pés ao andar em posição ereta exercem indubitavelmente, em virtude da referida correlação, certas influências sobre outras partes” (ENGELS, s.d., p. 271).

Também destaca Engels a fala como característica essencial da evolução do homem, pois, dado o fato de os humanos viverem coletivamente, de precisarem se comunicar e comunicar o que aprendiam e observavam, tiveram a necessidade de desenvolver uma linguagem articulada que pudesse expressar idéias, conceitos, signos etc. Em função do progressivo domínio da natureza e do desenvolvimento de novas técnicas, o homem aos poucos foi descobrindo nos objetos propriedades que até então não conhecia, ao passo que

o desenvolvimento do trabalho, ao multiplicar os casos de ajuda mútua e de atividade conjunta, e ao mostrar assim as vantagens dessa atividade conjunta para cada indivíduo, tinha que contribuir forçosamente para agrupar ainda mais os membros da sociedade. (ENGELS, s.d., p. 271).

Nisso residiria a explicação para o surgimento da linguagem, no processo onde o organismo sofreria várias modificações:

a laringe pouco desenvolvida do macaco foi-se transformando, lenta mas firmemente, mediante modulações que produziam por sua vez modulações mais perfeitas, enquanto os órgãos da boca aprendiam pouco a pouco a pronunciar um som articulado após o outro. (ENGELS, s.d., p. 271).

Engels afirma que o trabalho e a palavra articulada “foram os dois estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se transformando gradualmente em cérebro humano” (ENGELS, s.d., p. 272). Com o desenvolvimento do cérebro, desenvolvem-se também os sentidos, instrumentos de contato mais imediato com o meio.

Da mesma forma que o desenvolvimento gradual da linguagem está necessariamente acompanhado do correspondente aperfeiçoamento do órgão do ouvido, assim também o desenvolvimento geral do cérebro está ligado ao aperfeiçoamento de todos os órgãos dos sentidos. (ENGELS, s.d., p. 272).

Todo esse desenvolvimento – do trabalho, da linguagem, da capacidade de abstração, dos sentidos –, “em grau diverso e em diferentes sentidos entre diferentes povos e as diferentes épocas” (ENGELS, s.d., p. 273), foi o fator determinante para que o homem e a própria sociedade também se desenvolvessem.

Engels o Homo erectus

Se olharmos o que se conhece hoje em termos de evolução humana, temos que o Homo erectus, que viveu há cerca de dois milhões de anos, é o ancestral mais antigo do Homo sapiens, o humano moderno. Isso não significa dizer que começa no Homo erectus a história da evolução humana, mas é impossível tirar dele um papel destacável:

O Homo erectus foi a primeira espécie humana a utilizar o fogo; a primeira a incluir a caça como parte significativa de sua subsistência; a primeira capaz de correr como os humanos modernos o fazem; a primeira a fabricar instrumentos de pedra de acordo com um padrão definido; a primeira a estender seus domínios para além da África. (LEAKEY, 1997, p. 13).

Sabe-se que houve um grande número de espécies que evoluíram a partir do macaco, todas bípedes embora com fortes características simiescas: cérebro pequeno, dentes molares grandes, maxilares protuberantes e um modo de subsistência semelhante ao do macaco. Sua alimentação era essencialmente vegetariana. Pouco se sabe de como viveram, como morreram, e mesmo quantas espécies diferentes foram. Sabe-se apenas que, entre sete e 2 milhões de anos atrás, uma grande quantidade de diferentes espécies de macacos bípedes evoluiu, adaptando-se a diferentes condições ambientais. E que essas espécies se assemelhavam com os humanos apenas no modo de andar.

Como a sinalizar a origem do gênero Homo, “em meio a essa proliferação de espécies humanas houve uma, entre 3 e 2 milhões de anos atrás, que desenvolveu um cérebro significativamente maior” (LEAKEY, 1997, p. 14). Esses ancestrais humanos começaram a produzir suas primeiras ferramentas, batendo duas pedras uma contra a outra, o que propiciou a eles, entre outras coisas, o acesso a alimentos que até então lhes eram negados. “Os primeiros conjuntos de artefatos encontrados têm 2,5 milhões de anos de idade; eles incluem, além de lascas, implementos maiores tais como cutelos, raspadores e várias pedras poliédricas” (LEAKEY, 1997, p. 46). Nesse sentido, temos que a história da evolução humana está marcada, conforme assinalava Engels, pela fabricação de ferramentas utilizadas no trabalho.

Há também a questão da alimentação. Engels apontava que a fabricação de ferramentas próprias para a realização da caça e da pesca está relacionada à passagem de uma alimentação exclusivamente vegetariana para uma alimentação mista. Essas novas características da alimentação teriam oferecido ao organismo ingredientes essenciais para seu metabolismo. Tal influência teria se manifestado principalmente no cérebro, “que recebeu assim em quantidade muito maior do que antes as substâncias necessárias à sua alimentação e desenvolvimento” (ENGELS, s.d., p. 274). Esses novos hábitos alimentares demandaram o uso do fogo, que auxiliava no processo de digestão pelo cozimento dos alimentos e na domesticação de animais, aumentando, assim, suas reservas de carne.

Sabemos, a partir das descobertas arqueológicas do século XX, que o aumento do cérebro e as mudanças nos dentes estão vinculados à passagem de uma dieta exclusivamente vegetal para uma dieta que incluía também carne. Partindo da compreensão de que a carne é uma fonte concentrada de calorias, proteínas e gordura, fica fácil entender que “somente pela adição de uma proporção significativa de carne à sua dieta poderia o Homo primitivo ter ‘custeado’ a construção de um cérebro maior em tamanho” (LEAKEY, 1997, p. 62). Também se percebe, pelas descobertas levantadas pela arqueologia, que o acréscimo de carne à dieta humana provocou mudanças na própria organização da sociedade, uma nova divisão do trabalho, o uso de novas ferramentas e do fogo etc.

O homem teve um grande número de antepassados, alguns distantes, outros mais próximos, não tendo evoluído de forma linear do macaco até nós. Quando falamos em evolução, falamos antes de mais nada em adaptação local, que, no caso do homem, não se dá apenas pela modificação biológica com descendências, mas tem no trabalho um mecanismo que permite tentar diminuir as conseqüência negativas das intempéries do meio ou suprir necessidades vitais, como comer ou se proteger do frio.

Houve várias outras espécies, como as australopitecíneas, contemporâneas aos ancestrais humanos, que compartilhavam características que viriam a aparecer no Homo sapiens, do que se depreende que a “família” humana, entre “primos” e “irmãos”, é grande e diversa. E que o Homo sapiens não é a última parada da evolução humana.

As “seqüências” evolutivas não são degraus de uma escada, mas sim a reconstrução em retrospecto de uma trilha labiríntica, ramo por ramo, da base do arbusto à linhagem, sobrevivendo agora no topo. (...) O Homo sapiens não é produto de uma escada que desde o início sobe diretamente em direção ao nosso estado atual. Constituímos tão-somente a ramificação sobrevivente de um arbusto outrora exuberante. (GOULD, 1999, p. 54-5).

Se considerarmos que havia contemporâneos dos ancestrais humanos, talvez seja possível afirmar que Engels errou ao defender a hipótese de que foi de um único grupo de macacos adaptados que surgiu o homem. Todavia, é preciso ter em mente que

a evolução normalmente se processa por meio de uma “especiação” – uma ramificação de uma linhagem a partir do tronco parental – e não por uma mudança constante e vagarosa desses grande troncos. Episódios repetidos de especiação produzem um arbusto. (GOULD, 1999, p. 54).

O Homo erectus não surgiu numa explosão biológica, mas é produto de um longo processo de evolução. É um arbusto, não um degrau de escada. Da mesma forma, as espécies dele oriundas apresentam outras especiações e assim sucessivamente. Ora, Engels não estava preocupado em definir um grupo e sua localização espacial e temporal, mas em expor o processo de evolução humana. Seu texto não vai em busca de uma única origem humana, mas procura defender a hipótese de que foi o trabalho – que, neste caso, apontamos como o responsável pelas diversas especiações – o fator que diferenciou a adaptação humana da adaptação de outros animais. Se todos os ancestrais humanos e seus contemporâneos, de diferentes regiões e épocas, têm características próprias, é óbvio que isso se deu em função das diferentes formas encontradas para se adaptar ao meio. Se havia diferentes formas de adaptação ao meio, é porque havia diferentes formas de trabalho. Então temos, retomando Engels, que não é apenas em função de uma determinação biológica que o homem se transforma, mas também pela sua intervenção, pelo trabalho, sobre a natureza.

Engels hoje

Temos, portanto, que várias das hipóteses de Engels foram comprovadas pelas descobertas de novos fósseis e pelo desenvolvimento das ciências biológicas. Diante desse fato, não é possível deixar de ficar impressionado por elas terem sido elaboradas sem o conhecimento de fósseis descobertos apenas no século XX. Se coube a Engels ser tão contemporâneo do nosso século, foi justamente pela escolha do método de análise – tomando como ponto de partida as contribuições dos teóricos da evolução humana do século XIX, em especial Darwin[2] e Haeckel –, ao procurar expor uma formulação materialista e dialética das ciências naturais. Foi mais além, neste e em outros escritos, polemizando com a forma idealista de fazer ciência, hegemônica na época, e que ainda hoje persiste. Parecia que o cérebro era o grande responsável pelo mundo que emergia das mãos humanas.

Em seu contato com o meio ambiente, o ser humano aprendeu a dominá-lo, ao longo de sua existência, desenvolvendo certas habilidades como a caça e a pesca, a agricultura e a tecelagem. O trabalho humano desenvolveu não apenas uma grande diversidade de técnicas e ferramentas como diferentes formas de organização das sociedades. Foi a cooperação entre mãos, os órgãos da linguagem e o cérebro que produziu as artes e a política, a cerâmica e as navegações, o direito e as religiões, a escravidão e o capitalismo etc. “Frente a todas essas criações, que se manifestavam em primeiro lugar como produtos do cérebro e pareciam dominar as sociedades humanas, as produções mais modestas, fruto do trabalho da mão, ficaram relegadas a segundo plano” (ENGELS, s.d., p. 275). Nesse sentido, o grande progresso técnico pelo qual passou a humanidade foi atribuído ao desenvolvimento e à atividade do cérebro. Os homens se acostumaram a explicar tudo como obra do cérebro. “Foi assim que, com o transcurso do tempo, surgiu essa concepção idealista do mundo que dominou o cérebro dos homens (...) e continua ainda a dominá-lo” (ENGELS, s.d., p. 275). Para Engels, nem mesmo os mais materialistas dos teóricos da evolução humana, como Darwin, conseguiam chegar a uma idéia precisa sobre a origem do homem em função de não ver a importância desempenhada pelo trabalho no processo de evolução.

Para Gould (1999, p. 210), “a importância do ensaio de Engels está não nas suas conclusões substanciais, mas sim na sua aguçada análise política do motivo pelo qual a ciência ocidental se achava tão apegada à asserção a priori da primazia cerebral”. O argumento de Gould resgata a importância da posição de Engels de crítica à separação entre a mão e a cabeça, a prática e a abstração, tanto na sociedade como nas ciências. Concordamos com Gould, ao trazer para nossos dias tais polêmicas, mas entendemos que a obra de Engels não se limita apenas a um caráter analítico: seu exemplo é de prática política, procurando combater, no terreno da luta de classes, a compreensão de superioridade do cérebro, que relega ao trabalho com as mãos um papel menor, numa sociedade onde o poder está concentrado nas mãos de uma elite “pensante”.

O trabalho hoje

Entendemos que é preciso, no âmbito das ciências humanas, restabelecer a centralidade da categoria trabalho para entender a vida humana, retomando a compreensão do trabalho como ação que “produz a natureza humana na mesma medida em que a delimita e a diferencia da natureza puramente animal, através de uma apropriação específica do próprio mundo natural” (COGGIOLA, 2002, p. 183). Se ainda hoje precisamos, como Gould na década de 1970, resgatar Engels e trazer à tona tal polêmica, é sintoma de que, em essência, pouca coisa mudou desde o século XIX.

Na sociedade em que Engels viveu, como na nossa, o trabalho com as mãos é ato de aviltamento do ser humano, cabendo sua realização a seres “inferiores”. Um outro tipo de trabalho, realizado “pela cabeça”, ganha papel de grandiosidade, sendo muitas vezes não considerado trabalho, esquecendo-se inclusive que depende de um órgão do corpo humano, o cérebro. Da mesma forma, esquece-se que não há trabalho puramente cerebral ou puramente manual, sendo a prática uma parte constitutiva do aprendizado (afinal não se aprende apenas observando ou refletindo sobre os processos). Esquece-se também que aqueles trabalhadores supostamente menos importantes, os que trabalham com as mãos, são os que produzem as riquezas materiais que servem para suprir as necessidades de toda a humanidade. Se negamos ao trabalho sua importância fundamental, negamos nossa própria história, a história do animal que chegou a ser o que é, a tornar real um mundo de sonhos e maravilhas, pelo trabalho.

Referências bibliográficas:
COGGIOLA, Osvaldo. O capital contra a história: gênese e estrutura da crise contemporânea. São Paulo: Xamã; Edições Pulsar, 2002.
DARWIN, Charles. A origem do homem e a seleção sexual. São Paulo: HEMUS, 1974.
ENGELS, Friedrich. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem [1876]. In: ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, s.d., v. II.
ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã: (I-Feuerbach). 10ª ed. São Paulo: Hucitec, 1996.
GOULD, Stephen Jay. Darwin e os grandes enigmas da vida. 2ª ed. São Paulo: M. Fontes, 1999.
HAECKEL, Ernst. A origem do homem. 2ª ed. São Paulo: Global, 1989.
LEAKEY, Richard. A origem da espécie humana. Rio de Janeiro. Rocco, 1997.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1985, v. I, t. 1.

[1] Segundo Gould (1999, p. 25-9), outros teóricos da evolução humana também não usaram em suas principais obras a palavra “evolução”: o francês Lamarck preferia “transformismo” e o alemão Haeckel “teoria das transmutações”.
2] Em Gould (1999) é também analisada a recepção das obras de Darwin por Marx e Engels e seu impacto sobre os fundadores do materialismo histórico. Sobre a compreensão de Darwin quanto a algumas das discussões apresentadas neste artigo, como a importância das mãos e a fabricação de ferramentas, deve-se conferir principalmente Darwin (1974, p. 63-70).

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Marxismo e Cristianismo


Por: Antônio Inácio Andrioli, e também publicado na revista Espaço Académico
A teoria marxista surgiu da reflexão crítica e científica sobre os mais importantes movimentos de trabalhadores surgidos na história e é, sem dúvida, a teoria mais relevante para entender a economia capitalista e a possibilidade de emancipação dos oprimidos. Iniciado pelo filósofo alemão Karl Marx, o marxismo continuou sendo desenvolvido e aperfeiçoado por outros pensadores, como Friedrich Engels, Rosa Luxemburgo, Wladimir Lênin, Leon Trotski, Antônio Gramsci, Georg Lukács, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Ernst Bloch. A maior vantagem do marxismo, como teoria, é que ele é um movimento crítico e, por isso, ele renasce com nova força da reflexão sobre seus próprios erros e permite que continue sendo interpretado e experimentado com maior rigor e eficácia. O marxismo é um pensamento em movimento, diferente do positivismo que é estático e conservador.

O cristianismo, maior expressão religiosa do ocidente, surgiu antes do capitalismo, e baseia sua fundamentação na vida e ação de Jesus Cristo. O ideal da vida cristã é a partilha, a comunhão. Este é o sentido da comunidade, expressando a idéia de uma vida em comum-unidade com os outros. Não cabe ali a propriedade privada, a exploração e a desigualdade social. Por defender o ideal de uma sociedade onde o importante é o comum, aquilo que é de todos, Cristo foi crucificado pelos poderosos de sua época, os romanos e fariseus, e, inclusive, os sumo-sacerdotes (religiosos que não comungavam dos ideais cristãos).

Entretanto, em torno do século VI, no reinado de Constantino, o cristianismo foi utilizado como ideologia a serviço da dominação pelo Império Romano. Os senhores feudais negaram o cristianismo e constituíram sociedades injustas, instrumentalizando ideologicamente a crença cristã para integrá-la politicamente ao Estado. Mais tarde, com o advento do capitalismo, os burgueses tentaram conciliar sua forma de vida parasitária com a fé cristã. Entretanto, os capitalistas mais autênticos se assumiram como liberais e se contrapuseram à Igreja, na tentativa de superar o cristianismo e acabar com a hegemonia do feudalismo.

Podemos afirmar que tanto os capitalistas que se “autodenominam cristãos” como aqueles que se identificam como liberais, negam a vida em comunhão e pregam a acumulação pessoal com o sacrifício da maioria. Seu combate é o mesmo, a luta contra o comunismo, termo que, até hoje, utilizam para confundir as pessoas. E essa é uma luta política, como não poderia deixar de ser, embora os opressores continuem afirmando que só eles é que podem fazer “política”. Como negar que o cristianismo é político se o maior líder de uma Igreja cristã é chefe de um Estado, o Vaticano, que em toda sua história organiza movimentos políticos em todo o mundo? Cristo foi morto como “preso político”, por defender idéias que contestavam a estrutura injusta da sociedade. Assim, todo cristão que vive o evangelho de forma coerente, desagrada àqueles que oprimem o povo.

Há mais de um século, o marxismo passou a ser a principal expressão do pensamento da esquerda mundial, tendo em vista que a teoria liberal se converteu em ideologia do capitalismo. Esta, além de ser anterior ao marxismo, não consegue apresentar perspectivas à esmagadora maioria da população, principalmente aos problemas da exclusão social e da destruição ambiental. Onde estariam os liberais cristãos? Teoricamente sua base é contraditória e conflituosa. Sua ação é, em sua maioria, disfarçada, secreta e geralmente hipócrita. A maioria dos capitalistas, não se revela como liberal (inclusive partidos deixam de declarar publicamente como liberais) para não assustar a população, reunindo-se em torno de movimentos empresariais, claramente opostos ao cristianismo e, mesmo assim, mantendo a aparência de “cristãos devotos” na sociedade.

Como o liberalismo passou a legitimar a opressão capitalista, para manter os privilégios de classe, muitos liberais negam o saber ao povo, se apresentando, eles mesmos, como estudiosos e “colecionadores” de obras do marxismo, mas reprimindo e discriminando a leitura marxista à população em geral. Atualmente, é freqüente verificarmos que os mesmos que estiveram a serviço da ditadura militar, que mataram e torturam pessoas para manter os capitalistas no poder, vêm a público combater o marxismo. Aliás, assumem a mesma prática dos que mataram Cristo: não querem que o povo conheça realmente o ideal cristão, assustando as pessoas sobre teorias que possam alterar a ordem que favorece aos poderosos. Da mesma forma que reprimiram a leitura do marxismo no período de ditadura militar, prendendo, perseguindo e assassinando marxistas no Brasil. São esses os liberais brasileiros que se apresentam como defensores da democracia.

Partindo do entendimento do significado do marxismo e do cristianismo, podemos verificar que as duas correntes de pensamento, em sua origem, convergem para o mesmo sentido: a vida em comum, o comunismo. O que não é possível é ser capitalista e cristão ao mesmo tempo e os liberais demonstram isso claramente em sua teoria, que surgiu, objetivamente, para combater o cristianismo, em torno do século XVII. Os equívocos de algumas experiências socialistas com relação ao cristianismo são evidentes, assim como foram contraditórias com o próprio marxismo, instrumentalizado para legitimar o poder de Estados autoritários e burocratizados. Mas, o marxismo permanece vivo, lado a lado com o cristianismo, com inúmeros cristãos marxistas, adeptos da Teologia da Libertação, o que não ocorre com o liberalismo.

Como o marxismo estimula o pensamento livre, sua leitura e debate devem ser oportunizados a todos, sem distinção. Através do marxismo tornou-se possível aos trabalhadores compreender a exploração capitalista, permitindo a sua mobilização e organização social contra os opressores, numa perspectiva de construção de uma sociedade socialista, sem classes e desigualdades sociais, coerente com o propósito cristão de que “todos tenham vida e a tenham em abundância”.

Antônio Andrioli é professor do Mestrado em Educação nas Ciências da UNIJUÍ - RS. Doutor em Ciências Econômicas e Sociais pela Universidade de Osnabrück – Alemanha
Ligações a Wikipédia da responsabilidade do blogue Ideal Comunista

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O feminismo contra a luta de classes?



“É um dos últimos maîtres à penser do século XX francês”. Dizia o jornal Público, na edição da P2 de domingo 9 de Dezembro, que pode ser lida na sua página. A entrevista de Alain Touraine, um sociólogo das correntes pós-modernistas, merece umas notas, embora rápidas, singelas e curtas.

Pergunta o “Público”: Que sociologia representa o senhor, 32 anos passados?

R: Houve, evidentemente, grandes transformações. Mas quando olho para o meu percurso vejo uma grande continuidade. A minha grande tarefa foi a de fazer uma sociologia do sujeito. O primeiro trabalho que fiz foi sobre a consciência de classe dos operários. Era um tema sobre o qual não havia praticamente nada escrito. Em particular, pelos marxistas. A explicação está nas contradições do sistema capitalista, dizem. Eu digo que não.
Porquê?
O estudo levou-me anos. Vi milhares de operários. A minha resposta foi: a consciência de classe atinge o seu ponto mais alto no momento em que a autonomia do trabalho operário, em particular na metalurgia, é destruída pela organização do trabalho, pelo fordismo, pela lógica do lucro capitalista, se quiser. Demonstrei que a seguir, quando se entrava nas empresas informatizadas, a consciência de classe baixava. Dizia o que digo ainda hoje: tudo depende da autonomia, da liberdade do indivíduo.
1ª nota breve:
A: A consciência de classe é um processo em formação. A consciência, de si para si, faz-se na luta política contra a exploração e nos processos constituintes que advêm da realidade concreta da luta no sistema capitalista. Os trabalhadores da Valorsul poderão ter assimilado um mais elevado sentido de classe, não no sentido declarativo ou simbólico da frase mas na assunção da sua acção enquanto conjunto, de que cada um faz parte e tem consciência disso, enquanto classe que luta contra outra classe. A consciência do papel histórico da classe trabalhadora, ou seja a sua consciência de que enquanto classe tem uma alternativa política ao capitalismo, que foi fundamental no século passado, estará hoje a níveis baixos, talvez até muito baixos, mas existe. É portanto um processo em que o indivíduo é sujeito enquanto colectivo – enquanto classe. Um sujeito tanto mais forte quanto a nossa acção colectiva e a nossa capacidade de (in)formação conseguir desenvolver.
B: O problema da consciência de classe nas novas empresas tecnológicas e de serviços terá a ver com outra questão: a implantação do toyotismo e o predomínio da comunicação (ou da manipulação global da consciência das massas) que elevou a factores sem precedentes a alienação do proletário. E este não é mais o operário metalúrgico: e todo aquele que vende a sua força de trabalho, não têm propriedade dos meios de produção nem assume neles papel de direcção.

Qual é o seu balanço? Os operários, por exemplo, quase desapareceram...
Não desapareceram. São mais do que se pensa. Em França, um em cada dois lares tem um operário ou uma operária. Representam 25 por cento da população activa. Já não são é personagem histórica.
2ª nota breve:
Touraine apenas assume como proletários os trabalhadores dos sectores industriais. Mas como está mais do que provado, a participação no processo de mais valias está hoje estendido por quase todo o sector dito de serviços. Por exemplo: nos supermercados fabrica-se pão e bolos, embalam-se produtos; no trabalho de design introduz-se valor … ou seja o proletariado está hoje muito diversificado, fragmentado e complexo, mas não deixa de ser proletariado. Os precários, os imigrantes, os desempregados são parte integrante da classe.

A sociologia deixou-os de parte, levada por outros temas, mais na moda?
Não. Observou que o mundo operário e o mundo sindical já não são um actor central da história. Por um conjunto de razões, entre as quais a fragmentação do mundo operário, o trabalho temporário, os contratos a prazo, a chegada de trabalhadores estrangeiros.
O problema que sempre me interessou: quem substituiu os cidadãos de Paris que fizeram a Revolução [de 1879]? Os operários.
Quem substitui hoje os operários [como actor central da História]?
Quem é?

São as mulheres.
Como? Porquê?
Não as mulheres enquanto mulheres, mas porque, hoje, como vemos no quotidiano, o essencial é a preocupação consigo. Le souci de soi é, de resto, o título de um dos últimos livros de Foucault. Nisso, eu penso como ele. A tradição vem da antiguidade clássica e passou ao cristianismo. O sujeito abstracto pertence aos séculos XVII, XVIII. Depois, pensava-se com base nas determinantes económicas, psicológicas, Marx, Nietsche, Freud. Hoje, 150 anos depois, redescobre-se a autonomia do sujeito, o papel essencial da reivindicação de ser um sujeito na situação actual. A preocupação com o corpo, com a imagem, consigo mesmo são aspectos elementares, mas obviamente importantes. E há essa preocupação maior - não apenas nas mulheres, não apenas nos homens - de construir a própria identidade.
2ª nota breve:
Não há dúvida que existe uma contradição de género na sociedade. Ele começa no proletariado feminino que se alargou exponencialmente mas que tem salários mais baixos, maior precariedade e maior desemprego. Mas também porque a mulher luta hoje contra a sociedade patriarcal que o capitalismo ainda impõe – particularmente em Portugal. Foi a difícil luta pela despenalização do aborto, é a dupla jornada de trabalho, a limitação à intervenção social, mas também o facto da burguesia continuar a guardar os seus lugares de comando e propriedade para os homens. Veja-se quem é hoje os presidentes dos conselhos de administração? Veja-se quem fala hoje como donos das empresas?
Mas esse facto, a contradição de género, não elimina a determinante contradição de classe – antes pelo contrário. A luta do proletariado contra a burguesia precisa de dar destaque a todas as contradições que enfraqueçam o sistema capitalista e o regime de dominação. Outro facto é acreditarmos que a contradição de género poderá ser resolvida no capitalismo, o que até nas experiências passadas de socialismo não foi resolvido.

Enquanto o ouvia falar na autonomia do sujeito, na conferência, tomei a seguinte nota, que é uma pergunta: "Sim, o sujeito. E a estrutura? O global? E o poder que oprime e guia e determina e está para além dos olhos? Em mundos onde não chegamos: no capital financeiro, na tecnociência?"
É verdade. A realidade de hoje é a globalização. Hoje há poderes mundiais que não são controlados por ninguém. Há redes. Há mercados… ninguém consegue controlar esta coisa imensa, salvo, talvez, outra coisa ainda maior - guerras religiosas, jihad contra jihad.
O que resta, então?
O sujeito? ... o indivíduo contra todo o mundo?

Contra o todo.
3ª nota breve:
Como é mais que evidente todos os poderes globais são controlados. Em último recurso pelo domínio económico, político, militar e ideológico do “conselho de administração” do capitalismo que junta as principais potências e os principais monopólios. A NATO é amplamente controlada, a OMC, o FMI, o Banco Mundial… a comunicação de massas…
Os mercados são amplamente controlados por pouco mais de duzentas empresas que detêm o controle da produção e do comércio mundial, e tenderão a ser mais com os contínuos processos de fusão.
As massas é que poderão um dia não ser controláveis. Agindo conscientemente, percebendo o seu papel e o seu objectivo, não o indivíduo contra todo o mundo mas os proletários contra a burguesia. A escala em que isso acontecerá é que ainda não se sabe.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Capitalização individual, agora também no Estado!


Os trabalhadores vão passar a poder descontar mais dois ou quatro por cento sobre as suas remunerações médias a partir do próximo ano, anunciou hoje, em conferência de imprensa, o ministro do Trabalho e da Solidariedade, Vieira da Silva.
É o Estado capitalista no seu “melhor”. A capitalização individual é incentivada pelo PS. Adeus solidariedade inter-geracional, agora é o governo a promover a ideologia individualista.
O governo inventou uma esperança para o falhanço das suas políticas, para a destruição do Estado Social. Se o trabalhador quer uma reforma maior não tem que lutar, tem que esmiuçar ainda mais o seu salário para pagar ainda mais por um direito que lhe foi tirado. E se o não conseguir a culpa será dele – o Estado lava as mãos. É por aí que chegamos à ideia reaccionária de que se a pessoa é pobre ou desempregada a culpa é dela.
Esta medida do PS é mais do que um dois em um, é um quatro em um.
1. O Estado demite-se da sua responsabilidade.
2. O individualismo passa a ser a solução.
3. Entra mais dinheiro para safar o défice.
4. Quando os fundos tiverem gordinhos entregam-se à gestão privada que é mais “eficiente” e “competitiva”.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

O coração do Granadeiro e o calmante do Francisco

foto charagoesquerdo.wordpress.com
Já temos vindo a despedir nos últimos anos e este ano, por exemplo, despedimos 600 pessoas. Corta o coração dizer isto mas, para o ano, despediremos um pouco mais. As tecnologias criam empregos mais qualificados", disse Henrique Granadeiro.
A demagogia de Granadeiro é uma coisa brutal. Corta-se o coração ao representante do exploradores de uma empresa que diminuiu para um terço o número de trabalhadores. Corta-se-lhe o coração, coitadinho! Ai que ele morre de desgosto!
Perante isto, podia ter sido melhor a reacção de Francisco Gonçalves, coordenador da CT. Apesar de demonstrar preocupação, ele desvalorizou as declarações do patrão, disse que tinham que “ser vistas no quadro do congresso das comunicações”, e centrou o seu ataque na ANACOM (ouça-se o site da TSF). Ora talvez fosse melhor centrar o ataque na demagogia do patrão e na responsabilidade do governo.
E talvez isso tenha aberto espaço a Mário Lino que “disse não as entender como um pré-anúncio de despedimento, mas admitiu estar preocupado, porque estão empregos em causa”.
Se a demagogia fosse onda hoje tínhamos tido um tsunami!
Depois dos conflitos entre sindicatos da CGTP na PT, com STT, SINTTAV, SNTCT, com a ajuda do STPT em guerra aberta, da parcialidade objectiva assumida pela coordenação da CT que em vez de unir ajudou a dividir, estas declarações de Francisco Gonçalves talvez não ajudem lá muito a resposta da classe.
Mas um dia não são dias. E melhores dias virão.

Ary dos Santos, nascido para lutar


Poema e texto retirados do Cravo de Abril
imagem: "Ary" -Pormenor de trabalho plástico de Céu Campos do Arestas de Vento

NASCIDO A 7 DE DEZEMBRO DE 1937:

JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS - Ary dos Santos - Zé Carlos - Ary: Poeta, Camarada, Amigo, Irmão.

Poeta da Resistência
Poeta da Revolução
Poeta do Amor
Poeta da Esperança.


O FUTURO

Isto vai meus amigos isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente.

Isto vai meus amigos isto vai
o que é preciso é ter sempre presente
que o presente é um tempo que se vai
e o futuro é o tempo resistente.

Depois da tempestade há a bonança
que é verde como a cor que tem a esperança
quando a água de Abril sobre nós cai.

O que é preciso é termos confiança
se fizermos de Maio a nossa lança
isto vai meus amigos isto vai.

José Carlos Ary dos Santos
(in Obra Poética)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Derrota de Chávez em referendo é alerta


Derrota de Chávez em referendo é 'alerta', diz Gilberto Maringoni
Escrito por Mateus Alves
artigo de Correio da Cidadania


Para comentar a derrota do governo venezuelano no plebiscito sobre as reformas constitucionais propostas por Hugo Chávez, o Correio da Cidadania conversa com o jornalista e historiador Gilberto Maringoni.
De acordo com Maringoni, autor do livro “A Venezuela que se inventa”, o resultado das urnas na Venezuela é um alerta a Chávez para que haja uma reaproximação com setores moderados e um reparo nas insuficiências do processo de reformas iniciado com a chegada do presidente ao poder em 1999.
Correio da Cidadania: Qual você acredita ter sido o principal fator que levou Chávez à derrota no plebiscito sobre a reforma constitucional?
Gilberto Maringoni: Se olharmos os números, vemos que a oposição manteve a quantidade de votos conseguida nas eleições passadas. O que houve foi uma abstenção de quase metade do eleitorado; o surpreendente não foi a oposição ter ganho, mas sim o chavismo ter reduzido sua votação.
CC: Tamanha abstenção foi, então, a única causa da derrota? Por que tantos chavistas não compareceram às urnas?
GM: Segundo Chávez, essa foi a causa. O certo é que não foi a oposição quem ganhou, mas sim o governo quem perdeu. Claro que, ainda observando os números, houve uma vitória da oposição por uma pequena margem, mas não se pode ficar dizendo que “foi apenas por uma pequena margem” como maneira de amenizar a situação e resolver o problema.
Quando diz que a abstenção ganhou, Chávez passa um dado real, mas não diz qual é a causa disso. Ele não fala quais foram as razões que motivaram os seus apoiadores a não comparecer às urnas para aprovar a reforma constitucional, forçada por ele como se fosse uma espécie de plebiscito que o aprovasse.
Tais fatores são vários. Precisam ser procurados nas insuficiências de um processo que evoluiu bastante desde 1999, mas que ainda possui problemas. Como principais questões conjunturais, que aconteceram de um ano para cá, temos a certa “forçada de mão” que o governo e Chávez deram em alguns episódios.
O primeiro desses é a formação do PSUV, o Partido Socialista Unificado da Venezuela. É um partido criado de cima para baixo, que foi formado desta maneira pois não existem movimentos sociais autônomos na Venezuela. O partido tem 6 milhões de militantes, mas estes não compareceram às urnas – se o tivessem feito, as mudanças na Constituição teriam sido aprovadas. Há problemas na estruturação do partido e em sua participação no governo – Chávez diz que “quem está com ele está no PSUV”.
O governo Chávez tem uma característica de não ter sido resultado de movimentos de massa, mas sim de um cansaço popular com o projeto neoliberal das décadas de 80 e 90 e da crise vivida no país que não resultou em um crescimento da mobilização popular.
Isso fez com que não houvesse movimentos autônomos. O que existe são iniciativas políticas populares tomadas pelo governo.
O grau de fragmentação da sociedade venezuelana resultante dos 40 anos de democracia do Pacto do Ponto Fijo, estabelecido em 1961, e da crise estrutural enfrentada no país durante os anos 1980 e 1990 criou uma sociedade com um potencial de rebeldia muito grande, mas de escassa organização.
CC: Desde que foi levado ao poder, em 1999, Chávez não foi capaz de aglutinar os descontentes no país?
GM: Ele conseguiu aglutinar de certa forma, mas se vemos organizações como a UNT, central sindical do país, trata-se de uma organização sem vida autônoma, sem muita expressão.
Isso faz com que as mobilizações no país sejam apenas de apoio a Chávez, como observamos durante o golpe de 2001 e em suas vitórias nas eleições.
CC: Quais outros motivos contribuíram para a ausência de chavistas nas urnas?
GM: As brigas que Chávez comprou, algumas delas bem difíceis, também contribuíram. Criticar a Igreja Católica, às vésperas do referendo, foi muito danoso à sua imagem; todos sabem que a Igreja venezuelana é golpista, conservadora, mas chamar os bispos na TV de “vagabundos” provoca sentimentos no povo que são complicados. Ele começou a brigar com aqueles que, toda semana, estão no púlpito falando diretamente com seus fiéis.
A não-renovação da RCTV - que embora em mérito Chávez tenha sido corretíssimo ao não permitir a continuação das transmissões pela emissora - foi uma decisão tomada de maneira pouco pedagógica para a população. O presidente tinha a prerrogativa legal para não renovar a concessão, mas não foi feito um grande debate nacional sobre a democratização das comunicações, não foi criado um método para tornar tal fato uma questão de formação política, que informasse à população o que é um monopólio, a razão pela qual não deveria ser renovada a concessão da RCTV e qual a razão pela qual a rede não poderia participar de um golpe de Estado e continuar impune.
Não sei se a melhor maneira deveria ter sido levar o caso à Justiça ou à Assembléia nacional, onde Chávez também ganharia por ter quase a totalidade das cadeiras. Fazer isso por um decreto é incômodo – como explicar para a população que ela não terá mais a sua novela? Além disso, a emissora colocada no ar é de muito baixa qualidade, é uma emissora oficial no pior sentido da palavra.
Essas batalhas foram complicadas. No caso da discussão com o rei da Espanha, Chávez estava certo, então não foi um problema. Porém, a briga com o presidente Álvaro Uribe, da Colômbia, veio em péssima hora; Chávez caiu em uma armadilha. De qualquer maneira, Uribe iria romper o diálogo com as FARCs, e o presidente venezuelano foi até condescendente demais ao levar a questão adiante. Uribe esperou para terminar o diálogo exatamente antes do referendo, procurando desgastar a imagem de Chávez.
Avaliações de colegas venezuelanos também dão conta de problemas internos do governo, de ineficiência de serviços públicos, questões administrativas. O fato é que essa derrota de Chávez não é o fim do mundo, mas sim um alerta. O presidente desfruta de uma popularidade igual a que tinha durante as últimas eleições, de algo em torno de 60%. O que aconteceu foi um desligamento dos setores moderados ou para o “não” ou para a abstenção.
Setores da intelectualidade que estavam com Chávez se abstiveram. Raúl Baduel, que faz parte de um setor chavista presente em várias situações nas quais o presidente precisou de apoio, resolveu puxar o freio de mão. É certo que havia divergências entre os dois, mas Baduel não é um opositor histórico, não é um golpista e não pode ser tratado como um traidor.
Há também um tratamento ruim dado pelo governo em relação ao movimento estudantil. O combate que se fez quando começaram as mobilizações foi falar que os estudantes eram “peões do império”; claro que havia manipulação, que havia estudantes filiados a partidos de direita, mas à massa que estava nas ruas não pode ser dado o mesmo tratamento que é dado aos dirigentes, pois têm um descontentamento difuso.
Além disso, a reforma constitucional foi mal conduzida, faltou debate. A proposta original de Chávez continha 35 itens a serem modificados, e a Assembléia Nacional agregou, desnecessariamente, outros 34. A proposta transformou-se em uma árvore de natal, complicada, e Chávez e a oposição forçaram que a consulta para a aprovação da reforma fosse um plebiscito sobre o próprio presidente.
Tais problemas, no entanto, não podem colocar em dúvida os aspectos positivos conquistados pelo governo na Venezuela. A própria direita está espantada com a situação, pois Chávez tem ainda cinco anos de governo pela frente e um poder de aglutinação imenso, sendo capaz de retificar todos os seus problemas para que não perca apoios importantes.
CC: Quais seriam esses aspectos positivos?
GM: Chávez tem feito um governo que, até aqui, mudou a face da América Latina. No essencial, o rumo do governo está correto, ao democratizar a sociedade, ampliar os poderes das camadas populares e da população indígena, reduzir a jornada de trabalho, acabar com a autonomia do Banco Central, proibir o latifúndio, fortalecer o Estado em seu caráter público, ao realizar as “missões” que serviram e servem de assistência a uma grande parcela da população venezuelana que sofria uma exclusão total.
O governo também colocou a questão social no centro da esfera de governo, algo que foi seguido por outros países na América Latina. Chávez mostrou também que é possível romper com o modelo neoliberal e distribuiu a riqueza do petróleo para a população, mesmo embora o Estado venezuelano ainda seja muito burocrático, muito corrompido, ineficiente.
A luta ideológica que faz também é de extrema ousadia. A Venezuela, um país pequeno, conseguir pautar as lutas na América Latina e servir de referência a outros países – não só Cuba, Bolívia e Equador, mas também a Argentina e o Brasil, por exemplo – é algo de extrema importância.
CC: A riqueza proveniente do petróleo torna tal tarefa mais fácil, não?
GM: Claro, com o barril de petróleo a 100 dólares, até você e eu faríamos a mesma coisa. Mas o fato de o petróleo estar valendo tanto se deu muito em função do próprio Chávez; é preciso lembrar que isso não aconteceu por mágica. Quando Hugo Chávez tomou posse, o custo do petróleo era de 9 dólares por barril, e a OPEP estava desarticulada. Em julho de 2000, o presidente convocou, em Caracas, uma reunião geral do cartel petrolífero, algo que não ocorria há mais de 30 anos; ali, a OPEP retomou a política de cotas, de restringir a produção para resguardar reservas e, assim, melhorar o preço de barganha.
Já no final de 2000, o petróleo estava a 22 dólares o barril. Houve, claro, um fator que estava além do controle de Chávez: o aumento brutal do consumo mundial, capitaneado pela China a partir de 2001.
CC: A questão da reeleição indefinida faz parte dos aspectos negativos da proposta de reforma constitucional?
GM: Isso não é um problema tão grande quanto a imprensa alardeia. É uma proposta dentro das regras democráticas, não é um golpe. A pauta da reeleição foi colocada na América Latina pela direita – Fernando Henrique Cardoso, que a critica, foi quem a iniciou no Brasil.
Há alguns regimes europeus atrasados, com reis, imperadores – muito mais atrasados que qualquer república de banana, pois mantêm uma dinastia com dinheiro público à toa –, onde primeiros-ministros ficam no poder enquanto têm apoio, como na Inglaterra. Chávez ficaria no poder enquanto tivesse apoio.
É importante dizer, também, que a Constituição brasileira, de 1988 para cá, sofreu mais de 50 mudanças votadas no Congresso – ou seja, reformas constitucionais qualificadas, feitas por governos neoliberais. Ninguém achou que isso era golpe, e foram feitas sem nenhuma consulta popular. As mudanças que Chávez tenta fazer foram levadas a um debate público, por meio de referendo. A direita precisa deixar de hipocrisia, pois ela nunca foi tão democrática quanto a Venezuela nos dias de hoje.
Como disse uma articulista da Folha de S. Paulo recentemente, Chávez, apesar da derrota nas urnas, ainda pode sair ganhando, pois o resultado da consulta prova que seu regime é democrático, que ele pode perder.
CC: As críticas da falta de democracia na Venezuela, então, são infundadas?
GM: O governo de Chávez é o melhor governo da América Latina, é extremamente avançado, e o presidente teve habilidade ao construir o seu governo.
Agora, trata-se de um governo muito pessoal. Se Chávez é assassinado, o processo venezuelano fica comprometido. Não se criou uma cultura chavista, mas sim uma cultura de agregados, de apoio popular difuso. Não existe um partido com um núcleo de elaboração política para o governo da Venezuela – aliás, a elaboração política e teórica do governo é muito pobre.
Hugo Chávez, porém, é um tático excepcional. Entre o que ele fez ao longo dos anos há coisas geniais. A maneira como dividiu a oposição na questão das telecomunicações ao fazer um acordo com Gustavo Cisneros é um ponto alto da tática política mundial histórica.
CC: Em face das estruturas políticas tradicionais que observamos em países em desenvolvimento, você acredita que lideranças carismáticas que flertam com o populismo são um dos caminhos possíveis para que se consigam mudanças?
GM: É errado dizer que Chávez flerta com o populismo; ele é, sim, um populista. Precisamos largar a teorização feita pela direita da ciência política e mesmo por pessoas de esquerda de que o populismo é um mal. O populismo não é uma escolha, é uma situação histórica dada.
No Brasil, durante os anos 30, época em que não havia uma cultura de instituições democráticas urbanas consolidadas e estávamos saindo da República Velha, do voto de bico de pena, o avanço que houve no país no campo econômico e a migração das pessoas do campo para a cidade não tinham nenhuma referência de convívio institucional. A referência era um líder carismático, Getúlio Vargas. Isso também aconteceu na Argentina e no México.
Na Venezuela, por conta da crise profunda vivida no final do século XX, as instituições existentes estavam virando fumaça. A única maneira existente de impedir que o país se auto-destruísse era a chegada ao poder de um líder carismático, populista. Não há nenhum problema nisso; existem, sim, componentes autoritários em um líder populista, mas, naquela situação, não havia alternativa.
Como não há movimento popular estruturado, uma das funções do líder populista foi cumprir o papel de solidificar essas pontas. Chávez é uma etapa histórica na construção de instituições democráticas sólidas, que espero que seja transitória.
É preciso tirar da cabeça que o populismo é uma coisa negativa. Mesmo chavistas dizem que o presidente não é populista, mas é sim. E isso não é uma coisa ruim. Quem diz que o populismo é ruim é a direita, até mesmo pelas características de fortalecer o lado popular da sociedade de um governo do tipo.
Um problema do qual lideranças populistas padecem é a sua incapacidade em organizar a sociedade. Isso faz com que não tenham substituto à altura. Para se manter no poder, tais líderes não podem ter competidores; na Venezuela é assim, não há substituto à altura de Chávez.
CC: Quais os rumos que você acredita que o governo de Chávez deverá tomar a partir de agora? Há mesmo essa possibilidade de o presidente sair fortalecido pois o resultado nas urnas reitera a democracia existente em seu governo?
GM: Inicialmente, o governo sairá enfraquecido. A direita, não só na Venezuela como também na Bolívia e no Equador, tentará se reanimar. Se o governo venezuelano conseguir resolver os seus problemas, reaglutinar suas bases, se reaproximar dos setores moderados que momentaneamente – espero – se afastaram de Chávez, pode se fortalecer, sim.
Chávez não deverá moderar os objetivos estratégicos do processo na Venezuela, mas sim aprimorar sua flexibilidade tática para conseguir conviver com diferenças internas. O país cresce a 10% ao ano, e é muito difícil Chávez cair com estes índices. Agora, se isso acontecer, será algo muito preocupante.
CC: Quais as diferenças principais entre o governo da Bolívia e o governo venezuelano?
GM: O governo de Evo Morales teve sua origem no movimento social, Morales era dirigente sindical, houve mobilizações impressionantes no país entre 2001 e 2004. Na Bolívia, diferentemente da Venezuela, existe uma mobilização popular – por isso a direita, lá, tem um grande problema. Não é um governo sem apoio.
CC: E quais as suas opiniões sobre as mudanças possíveis no Equador de Rafael Correa?
GM: Lá, temos um caso novo. Até agora, Correa venceu uma grande batalha ao conseguir convocar a Constituinte. O Equador tem problemas gravíssimos: não tem moeda própria, é um país pobre, que viveu intensas ebulições nos últimos anos. Elegeram um governo popular, que caiu e foi substituído por um governo de direita; agora, levaram outro presidente popular ao poder.
Parece-me, à distância, que a situação no país está tranqüila. Quando Rafael Correa for tocar em pontos nevrálgicos do sistema de dominação de classes, tudo pode se radicalizar; quando as propostas de reforma começarem a ser votadas, aí sim haverá enfrentamento

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Notas de observação sobre a expulsão de Luísa Mesquita


A expulsão de Luísa Mesquita foi, e ainda é, motivo de conversa em blogues, sites, partidos, corredores, ruas…
Luísa Mesquita é uma deputada conceituada no seu distrito. Muitos entendem-na como competente, combativa, determinada. Outros como sectária e agressiva.
Muitos opinam pelo seu apego aos lugares e recordam a sua primeira candidatura à Câmara de Santarém: substituiu um candidato já anunciado publicamente, Vicente Batalha, com o argumento de saúde deste. Poderá ter sido, mas todos ficaram a achar que tinha a ver com as divergências que este tinha, pouco antes, manifestado face ao PCP.
Muitos opinam pela sua batalha em defesa do Alviela, outros acham que é abuso acumular durante cerca de 10 anos o lugar de vereadora com o de deputada.
Portanto, argumentos no “prós e contras” não faltam.
Mas será que é verdadeiramente isso que está em causa?
A renovação de personagens políticas é uma coisa positiva. Muitos elogiam a renovação parlamentar feita com novos deputados; em contraponto, vários presidentes de câmara estão há quase 30 anos nos lugares. A “truculência” com os presidentes de Câmara da Marinha Grande ou de Setúbal, tem contraponto com a persistência de Odete Santos em manter-se deputada ou António Ganhão e Maria Emília como presidentes de Câmara.
A ética e a renovação podem ser alcandoradas a declarações televisivas ou intervenções de tribuna inflamadas – mas é como o bumerangue, voltam sempre ao local de partida.
Mas o que talvez possa suscitar uma reflexão pró-marxista mais interessante seja sobre o trato político de um Partido Comunista com os seus militantes. Luísa Mesquita tinha uma responsabilidade para com o PCP que não cumpriu. Mas será que hoje estes problemas políticos – mesmo que de “oportunismos partidários ou defesa de tacho” podem hoje ser tratados com medidas administrativas? Será que assim as coisas não tendem a cair para os que estão pelo Partido, pelo respeito do colectivo ou do centralismo democrático, enquanto do outro lado ficam, cada vez mais, os traidores e os vendidos aos lugares?
Neste caso pode não haver vitoriosos; Luísa Mesquita e a Direcção do PCP podem ser perdedores na imagem pública. Não porque os órgãos de informação, profusamente dotados de escribas reaccionários, ponham setinhas para baixo consoante as simpatias ou os humores dos ditos escribas, mas porque a política e a luta política tem que ser feita assim mesmo. E muitas vezes é preciso saber recuar, procurar novas agendas políticas e novos protagonistas para essas agendas.
O centralismo democrático, inspirador das decisões administrativas, está hoje desactualizado da realidade contemporânea. O modelo de organização leninista de partido está ultrapassado pelas novas formas de produção, comunicação e organização do estado burguês.
A uma nova realidade, dialecticamente, precisamos de adoptar uma nova forma de organização. Com a política no comando.
Mas isso é o mais difícil.