quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

SEM CHAVE PARA O SOCIALISMO, a propósito da Venezuela

Artigo publicado na Revista "A Comuna" pelo líder parlamentar do BE Luís Fazenda, por Carlos Santos, responsável do portal http://www.esquerda.net/, e por Victor Franco.

A Venezuela apresenta uma resposta nacionalista, muito contraditória e confusa, ao domínio imperialista dos EUA na região. Esse enfrentamento tem largo apoio popular e engajou politicamente os excluídos. Mas nada nesta história aponta para qualquer socialismo, tímido que seja.

1. O nacionalismo intermitente
Ao longo do século XX o capitalismo norte-americano saqueou a América Latina. Primeiro, nas matérias primas e no comércio desigual. Depois, também, através da rapina financeira dos mecanismos da dívida externa. Para o efeito alimentou “burguesias compradoras” e dependentes, regimes políticos frágeis, por vezes fantoches. Em muitas situações e países, os EUA fomentaram a imposição de ditaduras militares, numa barbárie sangrenta. Só Cuba, como se sabe, escapou a esse processo a partir de 59, através de uma revolução com foros de libertação nacional. Os períodos democráticos nos vários países foram sempre curtos e instáveis. A relativa generalização de sistemas democráticos na viragem do século constituiu um recuo dos EUA, mas não diminuiu a pressão da pilotagem política da Casa Branca, de ingerência aberta até em alguns estados do norte do sub-continente.
Este quadro, a traços muito grossos, provocou ao longo do século findo e da actualidade a emergência de soluções nacionalistas. Numas nações com a participação da burguesia nacional, noutras sem ela, ou por ser incipiente ou por desacompanhar o nacionalismo. Esse nacionalismo intermitente, umas vezes constitucional, outras vezes por golpe militar ou insurreições, teve vários matizes políticos. Conhece-se de tudo, desde soluções conservadoras a soluções populares. Com a mencionada excepção cubana todas estas vias foram, a prazo, revertidas pelo imperialismo americano.
O confronto chavista entronca nesta tradição latino-americana e bebe ainda muito da cultura da descolonização. O constante apelo aos heróis libertadores é prova disso, Bolívar ou muitos outros. Repare-se que em 92 Chávez e o seu grupo encabeçaram um golpe militar falhado e que em 99 ganharam eleições, o que veio repetindo sucessivamente. Não é o primeiro, provavelmente não será o último, nacionalista anti-gringos que tentou as duas formas de conquista do poder.
O que importa apreciar não é tanto a matriz do movimento chavista mas as singularidades do processo da Venezuela

2. As voltas trocadas
Nos anos 70 e 80, os anos da bonanza petrolera, as elites usurparam as mais valias do preço alto do petróleo. O poder desenvolveu uma ampla rede de clientelas, incluindo mesmo os sindicatos, e uma corrupção estatal em larga escala. O petróleo dava para tudo... Contudo, no início dos anos 90 os preços do ouro negro caem abruptamente. Em reacção, o governo de Andrés Pérez impôs um plano dacroniano de cortes em subsídios e apoios sociais. Privatizou a economia, disparando o défice e a dívida pública. A fraca indústria transformadora entrou em colapso e o país em convulsão. A pobreza atingiu quase 80% da população. Em 98, as revoltas populares alcançaram o pico: a repressão ao chamado caracazo originou centenas de mortos. Desde aí a situação só apodreceu. Tudo mudou com a onda popular que varre o país em 99 e traz Chávez ao poder. Então, o Estado passa a controlar a exploração petrolífera e a reverter para o sector público as receitas mágicas. Curiosamente, quando os preços internacionais do petróleo começaram a subir novamente.
Em prolongada luta, Chávez conseguiu impor uma derrota económica e política aos interesses norte-americanos e aos seus tentáculos corruptos internos no sector petrolífero. Beneficiando das constantes subidas do preço do crude o governo assegura taxas de crescimento de dois dígitos e mantém o pagamento da dívida externa.
A burguesia venezuelana, completamente dependente das companhias e da finança estado-unidense, armou, logo em 2002, um golpe de Estado contra o governo constitucional, de imediato quebrado pela resistência popular. Tentou ainda, em 2004, e perdeu, um referendo para o impeachement de Chávez. Os partidos da direita jogaram tudo contra o fantasma da “cubanização” da Venezuela, que não passou disso, apenas um fantasma. A seguir, quando o capital em Caracas tentou uma via de consenso com o Presidente, inexplicavelmente, os partidos de direita decidiram-se pelo abandono das eleições parlamentares.
Espantam os erros de cálculo. A direita na Venezuela, por ironia, é uma vítima colateral dos erros de Bush. Mas as voltas trocadas da burguesia mostram, de fundo, a inexistência de uma secção importante dessa classe que quisesse assumir as propostas nacionalistas.
E essa é uma especificidade importante: o chavismo reúne a convergência de sectores sociais intermédios, da burocracia estatal e militar, de pequenos proprietários, de trabalhadores pobres e de grandes massas de excluídos. Essa aliança social, nos choques políticos concretos, deu ao movimento um carácter anti-burguês. Para um pacato cidadão europeu aquilo até parece socialismo. Parece, mas não é.

3. O modo do milagre
É assim surpreendente que o governo tenha conseguido a “nacionalização” dos poços petrolíferos da faixa do Rio Orinoco através da compra das acções (até à posição maioritária) da Total, Statoil, Chevron, BP… enquanto as norte-americanas Exxon Mobil e a Conoco Phillips recorriam à arbitragem internacional. Só a Total recebe, para passar a minoritária, 834 milhões de dólares de petróleo. No ano passado, também as “nacionalizações” das empresas de telecomunicações e de electricidade de Caracas, antes sob controlo das multinacionais dos EUA, foram conseguidas com recurso à compra de acções. A compra de 82,14% da Elecar, pela PDVSA, a “Parpública” da Venezuela atingiu 739 milhões de dólares. Os anúncios inflamados das nacionalizações causaram algumas perturbações na bolsa de Caracas, mas os investidores reagiram com optimismo considerando o processo como transparente. O Financial Times aconselhou calma.
Por outro lado, Chávez não promove a nacionalização da banca ou de outras empresas estratégicas para o país. Joga antes em pressões como fez recentemente ameaçando intervir na banca se esta não cumprisse uma recente lei de favorecimento bancário da agricultura, ou sobre a grande produtora de aço SIDOR se esta não reduzisse os preços de venda para consumo interno.
A linha não é nacionalizar até porque há “empresários bons e maus”, ou “há empresários socialistas” como dizia o ministro Haiman El Toudi. A linha é “ocupar” empresas falidas, é criar novas empresas co-gestionadas e cooperativas que vão competir no mercado ganhando pela concorrência (?).
No mínimo, o projecto económico subjacente é discutível. Poderia até ser entendido como um compasso de espera ou uma defesa face ao mercado internacional. Poderia esperar-se, eventualmente, uma economia mista com preponderância pública nos sectores estratégicos. Mas não é isso que se está a verificar quanto ao capital nacional, nem nada indica que seja esse o curso do futuro.

4. Comparações domésticas
Ressalvando o tempo e as circunstâncias, podemos fazer um paralelo com o 25 de Abril português. As nacionalizações por cá, embora limitadas, foram muito mais avançadas. Tal como as expropriações agrárias. Tal como o conjunto dos direitos sociais conquistados, que superam o saldo da “revolução bolivariana”. O paradoxo português foi querer fazer o socialismo “no quadro da NATO”, por onde tudo regrediu.
O movimento popular na Venezuela, ao contrário, enfrentou o imperialismo americano, honra seja, mas como projecto social é bastante mais tímido. Mal se percebe a ideia, ainda em fase embrionária, da implementação das comunas territoriais como “base do mercado do estado socialista”, experiência autogestionária, com 5% (?!) do orçamento de Estado, trabalhando no micro-crédito, na micro-produção, na produção de serviços. Para sectores de economia social, dito alternativo, é muito débil. No caso português, em período pós-revolucionário, a dimensão do sector cooperativo e social foi bem mais marcante, quase sem apoios estatais.
Corre-se sempre o risco de comparar o incomparável. Impõe-se prudência na análise dos contextos. Mas fica a ideia geral acerca da profundidade relativa das conquistas sociais.

5. Missões
Se há léxico político original no chavismo é o das “Missões”.
Chávez iniciou uma política distributiva com base em “missões”. As missões fazem um bypass a uma função pública corrompida e burocrata, iniciam programas de fornecimento de alimentos e refeições a preços baixos, milhares de médicos cubanos levam a saúde aos bairros mais desfavorecidos, outros milhares participam em acções de alfabetização, reingresso na escola, criação de cooperativas de cultivo de terras, formação profissional e criação de oficinas. Estas políticas permitem saltos apreciáveis na redução da pobreza e do analfabetismo.
A questão que se levanta é a da estruturação de serviços públicos permanentes, não por campanhas, incluindo a segurança social que não arranca, embora já tenha lei aprovada.

6. Avarias democráticas
Conhece-se que em processos de transformação social, de conflito de classes, nem tudo poderá ser puro no campo da democracia política. Contudo, não pode deixar de ser democrático.
As frequentes acusações ao chavismo de instauração de uma ditadura não tiveram a menor comprovação. Com vitórias e derrotas, o voto popular foi respeitado. Mas nem tudo é cristalino acerca do regime político. É criticável que o Presidente tenha “convidado” o parlamento a praticamente auto-dissolver-se, durante 18 meses, votando plenos poderes ao chefe de Estado. Ainda para mais quando o parlamento era totalmente das cores da “revolução bolivariana”.
É ainda mais criticável que o projecto de nova constituição, felizmente chumbado pelo povo em referendo de 2007, previsse a reeleição sucessiva do presidente e lhe outorgasse poderes militares e civis excepcionais criando, de facto, um governo unipessoal.
Esta propensão ao caudilhismo em que se estribam todos os movimentos nacionalistas não é apenas redutora da participação das massas, cria um beco para as alternativas políticas.
O culto da personalidade pode fazer um poder, mas destrói um projecto político.
Ainda mais grave é que o caudilhismo, só por si, não é remédio que debele a corrupção generalizada do exército, da polícia, da administração pública. Uma verdadeira democratização e saneamento destes corpos do Estado, que também pontificam no partido governamental, afigura-se essencial para a continuidade da ordem constitucional. Os sectores corruptos podem ser chavistas hoje e golpistas amanhã…


7. Retórica e realidade
O arsenal ideológico de Hugo Chávez é chamativo. Diz do programa do seu Partido Socialista Unido da Venezuela ser etno-índigena, cristão, socialista, patriótico… invoca Cristo, Bolívar, Marx e o que mais for. Já era assim com o movimento V República que antecedeu este partido. Trata-se de uma amálgama ideológica, errática e incongruente, onde só resta como argumento Hugo Chávez himself. Não se insinua nenhuma ideia sobre a construção do socialismo para além daquilo que se pode enunciar como a causa do “alimento universal dos pobres”.
Não é totalmente inédita esta conjunção. Há muitos anos, Fidel Castro já explicou que o “socialismo de Cuba” era tributário da inspiração de José Marti, patriota anticolonialista, e de Marx. Goste-se ou não, em todo o caso, Fidel defendeu a tese com a lógica das etapas do processo revolucionário. A seu modo, mas de uma forma mais séria, fez uma fusão do nacionalismo e do socialismo. Como se sabe a história só se repete como farsa, acidentalmente com Hugo Chávez.
A criação do PSUV é muito atacada por se presumir a intenção de estabelecer um partido único. Chávez reitera que só quer um partido de maioria. Ver-se-á. Os acontecimentos dissipam sempre as dúvidas.
Em quaisquer circunstâncias, Chávez/PSUV é uma plataforma de um projecto nacionalista e popular, com a burguesia interna praticamente intacta e à espreita para tirar partido da inconstância dos sectores dirigentes bolivarianos.
O proclamado “socialismo do século XXI” é assim meramente uma retórica. Vale tanto como o folclore da política externa. Ninguém leva a sério “a frente anti-imperialista” com a China, a Coreia do Norte ou o Irão. Os primeiros a não acreditar nisso são mesmo os presumíveis aliados. Só conta certo e a doer a diplomacia do petróleo. Por este modo a Venezuela afirma-se na globalização económica. Ainda mais importante é a cooperação económica entre os Estados sul-americanos, onde a Venezuela joga papel e tem ascendente político. Basta citar o facto de ter comprado dívida externa da Argentina e preparar-se para comprar parte da dívida externa do Equador.

Este pequeno artigo visa uma chamada à realidade para além da retórica. Apoie-se o que há para apoiar no movimento popular e no processo político da Venezuela. Não pelo que se julga ser, mas realmente pelo que é. A confusão pode ser funesta.

Luís Fazenda
Carlos Santos
Victor Franco

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