sábado, 8 de setembro de 2007

A propósito da propriedade privada


A recente invasão de jovens ecologistas de uma propriedade privada trouxe intensa polémica. A burguesia e seus representantes no poder, no sistema partidário e na imprensa sairam em alvoroço contra tão bárbara agressão. O texto que aqui reproduzimos traz-nos uma abordagem qualificada centrada na


Ideologia da posse


A palavra ideologia é utilizada com vários sentidos na história do pensamento humano. Podemos fazer referência aqui, basicamente, a dois deles e que caracterizam significativamente sua utilização política: a) a ideologia para Marx, como sendo um conjunto de construções teóricas com a pretensão de falsificar a interpretação da realidade e manter situações de opressão; b) a ideologia para Gramsci, designando um conjunto de idéias, crenças e valores que constituem a visão de mundo de um determinado grupo social ou povo. Assim, embora pareça existir uma mera contradição entre as duas compreensões, há características que as unificam, visto que não há uma leitura absoluta da realidade. A ideologia (visão de mundo de um povo) não deixa de ser uma pretensão de verdade, contendo falsificações e, por outro lado, mesmo que as admitamos, não é possível abandoná-las, já que as pessoas não são neutras e seu posicionamento implica uma postura ideológica.
A propriedade é um princípio central da disputa ideológica na sociedade. Para o liberalismo a propriedade é encarada como um direito sagrado do indivíduo e, portanto, interessa sobremaneira sua legitimação em forma de lei para a preservação da ordem social. Um dos principais pensadores ao qual os liberais recorrem para afirmar o direito à propriedade é John Locke, utilizando, principalmente, sua obra Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Em Locke encontramos uma defesa da propriedade como resultante do trabalho humano. A função do Estado passa a ser a instituição da garantia de preservação da propriedade: “Considero, portanto, o poder político o direito de fazer leis, para preservar e regular a propriedade” [1]. Para Locke “o homem procura juntar-se em sociedade com outros que já estão unidos, ou pretendem unir-se para a mútua conservação da vida, da liberdade e dos bens que chamo propriedade” [2]. Verifica-se, assim, que, para Locke, a idéia de propriedade se refere à vida, à liberdade e aos bens, sendo que os liberais, em sua leitura, confundem propriedade com bens. Com base no conceito de Locke, a propriedade não necessariamente precisa ser privada, inclusive porque se os bens concentrados não cumprem com o princípio da vida e da liberdade o conceito de propriedade se anula. Locke chega a enfatizar, claramente, a função social dos bens, afirmando que estes pertencem ao indivíduo somente em caso de abundância e de garantia de manutenção da sua boa qualidade para terceiros[3]. Para Rousseau, importante pensador do jusnaturalismo e um dos primeiros críticos sociais, a propriedade configura a origem da desigualdade entre os seres humanos. Através do Estado e do Direito, os burgueses só converteram em lei (convenções) o que antes já possuíam por força (o que não constituía um direito). “O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer ‘isto é meu’ e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, quantas guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!”[4].
Mais tarde, Proudhon caracteriza a propriedade como sendo um “roubo” e, principalmente com Marx, o direito burguês da propriedade passa a ser o maior alvo da crítica social. Importante para o debate posterior, entretanto, é a necessidade de regulamentar a propriedade como acessível a todos, ou então, assegurar a sua função social.
Diante do exposto, nos parece impossível conceber a discussão da propriedade como “não ideológica”, já que ela assume uma centralidade na luta de classes e é apresentada como origem do Estado e do próprio arcabouço jurídico. Não podemos, nesse sentido, deixar de discutir os fundamentos do direito de propriedade e seguir aplicando simplesmente o que uma determinada lei prevê, sob o risco de estarmos reproduzindo o ideário jurídico burguês-liberal. É necessário, portanto, construir uma postura crítica do próprio Direito, para que a interpretação jurídica tenha qualquer pretensão de justiça. Ao trazermos a questão da propriedade para a esfera do Direito, no entanto, nos confrontamos com outro conceito, freqüentemente utilizado para determinar ações que se relacionam com a propriedade: a posse. Cabe então uma interrogação: qual é a relação do direito de posse com a propriedade?
A discussão acerca da posse como um direito jurídico nos remete a uma complexidade intrínseca à sua definição conceitual. Segundo Savigny a posse independe da propriedade e sua centralidade está no possuidor. Para Jhering, o que fundamenta o direito de posse é a propriedade privada, contrariando Savigny e apresentando uma abordagem mais progressista da questão. Analisando a etimologia da palavra posse (no latim) essa confere a caracterização de domínio, assenhoramento, dominação e apropriação. Com o decorrer do tempo, o Direito desenvolveu várias compreensões acerca do termo. No Direito germânico medieval, por exemplo, a posse consistia no domínio sobre algo, como sendo um direito real, não sendo admitida a violação da posse sem que, com isso, estivesse pressuposta a violação da propriedade. O Direito romano, por sua vez, separou a posse da propriedade. O Direito Canônico também teve sua participação na construção de um entendimento do conceito de posse, ampliando o campo da aplicação possessória, estendendo-a aos direitos pessoais e “espiritualizando” a posse.
No debate atual cabe a reflexão sobre a manifestação da ideologia nas ações jurídicas acerca da posse e até que ponto isso é negativo ou positivo. Para evitar o reforço à estrutura sócio-econômica de opressão social, a única alternativa viável é romper com a lógica positivista do Direito. No entanto, como parece inevitável a presença da ideologia, também no Direito (já que não há neutralidade entre sujeitos e toda interpretação é subjetiva), é importante pautar o quanto o progresso permanece possível diante do que está dado como lei. Portanto, a pretensão é meramente seguir a lei, para que ela seja cumprida, ou, ao interpretá-la, construir novos sentidos para sua aplicação que podem contribuir para a constituição de leis mais progressistas, estando a sociedade ciente do que elas significam?
O jurista, certamente, tem uma participação importante no estabelecimento de uma lei, a ponto de participar da responsabilidade na sua futura interpretação, alteração ou permanência. Por isso, a consciência da presença da ideologia e a exigência da crítica constante dos elementos fundantes da posse e da propriedade são decisivos na atuação jurídica, de forma que os efeitos da interpretação e da aplicação de leis possam se dar com vistas a uma maior mobilização, organização e participação da sociedade civil. Caso contrário, o Direito permanece conservado como mero aparelho ideológico a serviço da manutenção da desigualdade e da injustiça social.

[1] LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. In: Os Pensadores, 2ª. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
[2] Idem.
[3] Idem, p. 45.
[4] ROUSSEAU, Jean Jaques. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. In: Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 270.

ANTÔNIO INÁCIO ANDRIOLI , http://www.andrioli.com.br/, Professor do Mestrado em Educação nas Ciências da UNIJUÍ - RS. Doutor em Ciências Econômicas e Sociais pela Universidade de Osnabrück – Alemanha


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