sexta-feira, 22 de junho de 2007

O liberalismo de esquerda tem futuro?



Introdução
1. Os métodos de lançar o ataque ideológico.
2. A ética varre a economia para debaixo do tapete.
3. As palavras de Sócrates.
4. Democracia e opinião pública.
5. O perigo do grande centro.
6. Igualdade e oportunidade.
7. Igual importância e mérito.
8. Igual importância e responsabilidade.
9. O princípio do fim da segurança social.
10. Há espaço para um liberalismo de esquerda?


Introdução
O governo Sócrates tem mantido um assinalável apoio, expresso em sondagens, apesar de algumas boas jornadas de luta social, que se expressam em picos, e de uma greve geral tirada a ferros. Conhecemos os conteúdos da sua política, mas muitas pessoas são iludidas pela argumentação de que “não há alternativa”, “os sacrifícios tem que ser para todos” ou que é “preciso sacrifícios para defender e garantir o futuro do Estado social”…
Estará Sócrates a resistir ao neoliberalismo embora cedendo no particular para assegurar o essencial, numa “terceira via” que não garante a situação existente mas também não cede tudo à direita, que abre caminho entre «duas visões entrincheiradas sobre o futuro da protecção social (a dos liberais a qualquer custo e a do imobilismo conservador)»[1]?
Enquanto o governo inunda o país com a sua demagogia permanente alguns tentam teorizar essa “terceira-via” salvadora, contra todos os dogmas, todas as injustiças, todas as faltas de ética e de moral.
É nessa tentativa que vem José Conde Rodrigues (JCR), actual Secretário de Estado Adjunto e da Justiça, que desenvolveu um conjunto de temas no Instituto de Estudos Políticos na Universidade Católica, com o apoio do Prof. João Carlos Espada, e que traz à edição no livro com o título “A política sem dogma”[2].
É no argumentário desse livro, e em artigos de imprensa co-relacionados que este ensaio criticamente se coloca.
Assumidamente defensor do «liberalismo de esquerda» JCR concentra os seus ensaios em três abordagens essenciais: A democracia, a igualdade e a governação; a Filosofia Moral e a política, partindo da obra do iluminista David Hume[3]; a soberania, os nacionalismos e a Europa. É sobre as duas primeiras abordagens que este texto se concentra, essencialmente de forma descritiva.

1. Os métodos de lançar o ataque ideológico.
A primeira coisa que salta à vista na forma como os sociais liberais, ou os conservadores puros, lançam a luta ideológica é o modo como algumas asserções são introduzidas. Declaradas pura e simplesmente apesar de serem os pilares da sua argumentação ideológica, apresentadas como conclusões irrefutáveis – na verdade elas sim dogmatizadas – não suportadas em premissas verdadeiras e fidedignas, sem apresentação e rebate de contra-exemplos, não ou insuficientemente argumentadas, não explicam como as causas conduziram aos efeitos ou às conclusões e assentes em falácias suportadas sem dados ou por dados parciais, insuficientes e que ignoram alternativas. Em nome da luta contra os dogmas são eles que começam pelos dogmas.
Um dos exemplos mais comuns é dado por Anthony Giddens, teórico da terceira-via: «o Estado mostrou-se incapaz de gerir empresas de forma directa»[4]. Este argumento, tornado dogma, também dito profusamente por todos os teóricos neoliberais, tem inúmeros contra-exemplos: A EDP e a electrificação global do país, os Serviços Municipalizados, a EPAL e a distribuição de água, a PT e a construção nacional de uma rede e um serviço público de telecomunicações, os CTT e a distribuição postal, o Serviço Nacional de Saúde e a diminuição da taxa de mortalidade, a Brisa e a construção de uma rede de auto-estradas… são exemplos de empresas e serviços que, quando para isso foram direccionadas, antes de iniciarem os caminhos da privatização, prestaram um amplo serviço público e ajudaram a criar desenvolvimento e postos de trabalho.
Quem desenvolve estas afirmações omite que o avanço do neoliberalismo preparou, durante muitos anos, a privatização das empresas de serviço público e foi mantendo no Estado apenas aquelas que, por necessitarem de elevados investimentos ou terem dificuldade rentabilização capitalista imediata, lhes dificultava tomar posse. É por isso que no mesmo texto, Giddens afirma que «a função do Estado deve ser, por vezes, alargar o papel dos mercados, não reduzi-lo, ou ajudar os mercados a funcionar de uma maneira mais eficaz». É precisamente para isso que o Estado tem sido usado, com as privatizações, com a destruição do salário indirecto, com uma política fiscal favorável ao capital, favorecendo a acumulação privada do capital, de propriedade, interesses e gentes concretas, uma classe concreta, a burguesia.

2. A ética varre a economia para debaixo do tapete.
A segunda coisa que salta à vista no livro de JCR é a omissão da economia, das diferentes opções políticas e económicas, e dos interesses sociais objectivos que são inerentes ao poder. Imperialismo é uma palavra excluída, as características do capitalismo moderno, as transnacionais e a guerra são remetidas para a quase completa ausência. Coisas de somenos, por certo.
JCR evidencia (na linha do livro de Sottomayor Cardia, “Socialismo sem dogma”) «a transformação das ideias socialistas a favor do mercado… o fim dos velhos dogmas da esquerda»[5] e reconhece «esclarecedora» a afirmação de Tony Blair de que «não há uma gestão económica de direita ou de esquerda, mas apenas uma boa e má gestão»[6] no sentido de que «o debate deve ser direccionado para as questões sociais, para a discussão da cidadania social».
No lugar da economia como lugar societário central e decisório, surge a «ética na esfera pública», «mais do que discutir a propriedade dos bens, ou, por outras palavras, se o melhor é a defesa do privado ou do colectivo na economia, hoje o importante é discutir o âmbito da cidadania, o retorno do político, a liberdade responsável»[7]. «A social-democracia e o socialismo democrático devem ser dissociados de qualquer doutrina económica, pois as suas preocupações sociais constituem mais um impulso de natureza ética…»[8]. Uma espécie de política-detergente – é a que lava mais branco. Talvez isto ajude a perceber as dificuldades que o PS tem conseguir demonstrar que é um partido de esquerda.
Mas JCR esclarece melhor o seu sentido de cidadania quando diz que «a esquerda não pode identificar-se pela manutenção dos privilégios… a lógica da decisão política não se pode compadecer com a opinião de determinados grupos apenas porque fazem mais ruído, ou têm maior peso eleitoral» pelo que «há que enfrentar esse tipo de lógica corporativa», «as greves, por exemplo, que são um direito constitucional, não devem servir para objectivos de política geral que ponham em causa a capacidade de decisão dos representantes eleitos pelo povo. Mas isso acontece». JCR defende que «um dos pecados da governação é precisamente o excesso de concertação» pelo que «um Estado forte, com autoridade, também define o fim do ’complexo de esquerda’…»[9].
Compreende-se, como diz JCR «cada um ao seu jeito defende o iluminismo liberal por oposição a um iluminismo radical, igualitário. Cada um a seu modo, defende o gradualismo, a tradição, contra a arrogância da razão, a busca da verdade, contra a utopia, o respeito pelas regras gerais, cultivando as virtudes cívicas e morais»[10]. Há a «necessidade urgente de re-encantar o mundo… pelo retorno de um sujeito ético, com sentido de responsabilidade, activo e criador, que combine de um modo razoável conhecimento e emoção»[11].

3. As palavras de Sócrates.
Quem não reparou já na forma como Sócrates argumenta em favor das suas posições? Discursos onde as palavras razoável, justiça ou injustiça, moral ou imoral, bom senso, ou imparcialidade são usadas com muita frequência. São palavras entendidas como argumentos válidos pelo comum dos cidadãos mas são palavras muitas vezes subjectivas, usadas para esconder o verdadeiro sentido económico e político das medidas. Eis onde JCR enquadra os «pressupostos da decisão política: representatividade, razoabilidade e imparcialidade». Representatividade que «é dada ao governo pelos resultados eleitorais que representam a vontade popular… cuja eficácia apenas pode ser aferida ao fim do mandato»[12]; razoabilidade, porque «as decisões políticas devem ser razoáveis e não as ideais… e como em quase tudo ninguém é dono da verdade… as decisões são tomadas por quem foi eleito numa óptica de custos e benefícios sociais equilibrada» sendo que «as decisões mais difíceis nunca agradam a todos e as sociedades só progridem porque em determinada altura alguém decide para lá dos consensos ideais. Se assim não fosse não era difícil governar ou os Estados deixariam de ser necessários…»[13]; imparcialidade porque «as decisões políticas não podem nem devem, visar a satisfação de interesses particulares ou de grupo, sob pena de porem em causa o próprio princípio da igualdade de todos perante a lei», porque «o particular pode e deve defender o seu interesse, mas o político tem que ver mais longe e defender o interesse mais vasto da comunidade. Nisto consiste a imparcialidade, face a interesses privados, previsivelmente afectados pela decisão»[14].
Compreende-se porque o governo não cede aos interesses particulares e corporativos (aos trabalhadores, que não aos patrões), tem uma posição “imparcial” no Conselho de Concertação Social – medeia responsavelmente entre patrões e empregados –, e repete permanentemente que a representatividade que lhe foi dada pelo voto popular. Enquanto isso, o CCS vai sendo usado para legitimar o “diálogo social” com uma UGT agindo de traição em traição e uma CGTP incapaz de aí fazer agenda ou mediatização. No parlamento a maioria PS decide.

4. Democracia e opinião pública.
E qual o valor e o modo da democracia entendida por JCR, tanto mais que a participação popular é remetida para o acto eleitoral? JCR compreende também a importância da disputa da opinião pública mas valoriza-a de modo diferente e retira daí consequências interessantes. Vejamos:
«A opinião pública passou a ser o grande juiz das democracias tendo por base as sondagens e os inquéritos de rua… cada decisão precisa de ser legitimada na “praça pública”, quer através da sondagem, quer através dos órgãos da comunicação social… são os barómetros da popularidade que ditam as regras. Os governantes estão cada vez mais dependentes do imediatismo, do jogo do “real” em “directo” (Sócrates é bem o exemplo do homem-tv)… daí retirando a consequência de que «a medição quantitativa da actuação dos governantes constitui a determinante fundamental, deixando para trás o aparelho do partido, o “lobby” de classe ou mesmo os princípios orientadores de um qualquer modelo abstracto de sociedade». «Hoje em dia verifica-se que as contestações são orientadas por questões “terrenas”, que têm sobretudo a ver com “direitos adquiridos” do ponto de vista social, fruto da sociedade de “Bem-Estar”, rosto da sociedade de consumo, que conseguiu instalar-se com sucesso nas últimas décadas».
E daqui tira as seguintes ilações: «as grandes narrativas desapareceram», «entrou-se na era da democracia da opinião» e, interessante, «a democracia representativa e o seu par social estão em profunda crise. Como tudo isto irá acabar não se sabe, pois os determinismos sociais passaram de moda»[15].
Questionado, em entrevista por um jornalista, se se distancia muito dos apelos à democracia participativa feitos pelo Bloco de Esquerda JCR responde «que a dita “democracia participativa” acaba por cair sempre na demagogia e no populismo»[16].
A par da diminuição da democracia económica, os social-liberais têm mantido ou implementado condições mais difíceis de participação e cidadania. As leis eleitorais são disso um exemplo. “Cláusulas de barreira” para acesso aos parlamentos, círculos eleitorais uninominais, sistemas políticos bi-partidários por forma a restringir o acesso ao poder a apenas dois partidos – os do centro, os da estabilidade do regime capitalista - executivos monocolores no poder local, limitações do direito à greve e à manifestação… o controlo dos meios de informação e a formatação das culturas e mensagens emitidas por esses meios concentra-se no pensamento único.

5. O perigo do grande centro.
JCR revela ter a consciência do embaraço em que o regime capitalista pode cair. Por isso, alerta que «refugiando-se no consenso, os políticos do “grande centro” deixam pouco espaço para as aspirações populares, provocando cada vez maiores franjas de descontentamento nas margens da sua intervenção. Isto é, quanto maior parece ser o consenso ao centro, maior o perigo de crescimento da exclusão radical à sua volta». Reconhecendo que o conflito «é fundamental para arejar a democracia» alerta para que «as clivagens devam ser fortalecidas em torno dos programas sem pôr em causa o sistema e as regras de jogo. Se assim não for, corre-se o risco de gerar abusos que, à sua margem, e contestando os seus programas, acabam por conseguir destruir o próprio sistema». «Sejamos prudentes… a agitação começa a notar-se no fundo do lago… as ideologias ainda não desapareceram e sempre que se pretendeu acabar com algumas, outras surgiram…»[17]. Talvez seja com estas preocupações que o PS pretende rever as leis eleitorais.
Para JCR «o liberalismo clássico, o retorno da ética, o regresso dos valores e da pertença comunitária constituem as novas referências para a esquerda nos dias de hoje. A preocupação deve ser a de humanizar o capitalismo, não o deixando cair numa utopia escatológica, finalista, de sinal contrário à velha utopia comunista»[18].
Mas, então, o que têm sido estas políticas do grande centro? Em boa verdade políticas de submissão ao neo-liberalismo, políticas cooptadas pela agenda conservadora. É o que vimos por toda a Europa, ataques ao Estado social, à segurança social e às legislações de trabalho, privatizações sucessivas, financiamento dos capitalistas através do orçamento de Estado, destruição das políticas retributivas…
Têm sido as políticas do grande centro que têm aberto as portas à extrema-direita, e em nome do seu temor abraçam políticas cada vez mais conservadoras como é o exemplo da imigração.
JCR tem razão numa coisa: a agitação começa-se a notar no fundo do lago. Mas para que ela progrida é necessária a afirmação de políticas alternativas.

6. Igualdade e oportunidade.
Um dos suportes mais significativos, e comuns, na argumentação social-liberal e neoliberal diz respeito ao papel do Estado na promoção da igualdade entre as pessoas. JCR começa por sinalizar o seu ponto de partida, o «centro-esquerda» e o abandono de um qualquer ideal de igualdade que procure os resultados para todos. Deixamos de parte a velha[19] esquerda com a sua utopia assente na redistribuição de todos os bens primários, ou outros, para alcançar a igualdade plena. Ou seja, esta forma de garantir a igualdade de resultados não é só impossível como indesejável»[20].
«A esquerda não se pode caracterizar por distribuir resultados iguais para todos, mas sim por criar igualdade de oportunidades»[21]. JCR defende que «só um conceito de igualdade que tenha em conta a complexidade das diferentes posições ou esferas em que o indivíduo interage garantirá a evidente diversidade que caracteriza a circunstância humana»[22], ou seja «uma igualdade que se afirme como relação multifacetada entre as pessoas, medida por uma série de bens sociais[23], e não por qualquer identidade de posse ou da relação com os seus bens»[24].
Ou seja, todos têm igual acesso ao ensino superior desde que se pague propinas, todos têm acesso ao sistema de saúde desde que se pague taxas moderadoras… essa é a igualdade que esconde a desigualdade. Por isso são necessárias políticas redistributivas da riqueza, serviços públicos gratuitos, reentrega aos trabalhadores do seu salário indirecto.
Quanto a igualdade de oportunidades, como foi profusamente noticiado pela imprensa, o exemplo norte-americano é bem elucidativo. O país das oportunidades é o país do mundo que mais mantém a exclusão e a segregação social, é o país que menos possibilita aos pobres saírem da sua situação, é o país que reproduz os mesmos factores de diferenciação de classe e os transmite de geração para geração, é o país que menos oportunidades dá para as pessoas saírem do seu grau de marginalização ou pobreza social. A ideia de que qualquer um, independentemente dos seus rendimentos, possa, a partir do seu trabalho árduo e competente, tornar-se rico, nos EUA, é uma completa miragem.
A política do PS é elucida sobre as políticas de igualdade: com o PS há mais pobres, mais desempregados, salários mais baixos e mais desigualdade.

7. Igual importância e mérito.

JCR apoia a proposta dada pelo economista americano Ronald Dworkin «com o livro Taking Rights Seriously, que aborda a prioridade moral dos direitos enquanto reivindicações face ao Estado» posicionando-se «entre a velha esquerda igualitária e uma nova direita que abandona as pessoas ao mercado» e assenta «o individualismo ético em dois princípios: princípio da igual importância e princípio da igual responsabilidade». Simplisticamente dir-se-á que todas as vidas são igualmente importantes, mas cada pessoa tem, igualmente, uma especial e final responsabilidade no seu próprio sucesso. «Temos aqui uma “terceira via” que acolhe a igualdade nas suas diversas faces», «combinando a igualdade de oportunidades com a responsabilidade pessoal», entre «a velha esquerda igualitária que entendia que a responsabilidade colectiva devia predominar… e a direita que insiste na exclusividade da responsabilidade pessoal, no mérito, na competição, ignorando qualquer intervenção colectiva»[25].
Quer dizer, as pessoas são igualmente importantes, mas umas são mais importantes que outras, umas são mais iguais que outras. Os desempregados e os pobres passam a ser culpados do seu insucesso, da responsabilidade no seu falhanço. Não são as políticas que determinam os seus resultados nas pessoas, são estas que são preguiçosas e incompetentes.
Aqui JCR critica a exclusividade do mérito, ora é precisamente o mérito que é invocado pelo ministro das Finanças para alterar radicalmente o Estatuto da Carreira Docente. E é a comissão para revisão das carreiras e sistema remuneratório do chamado regime geral da Função Pública que introduz o demérito (através da avaliação de desempenho) como motivo de despedimento dos trabalhadores. Tem sido em nome do mérito, “vendido” nas empresas como uma mais justa e mais moral forma de remunerar trabalhadores, que os salários têm-se tornado cada vez mais dependentes de valores variáveis – decididos pelas chefias ao “seu belo interesse” e muitas vezes usadas como forma de castigar e discriminar activistas.

8. Igual importância e responsabilidade.
O discurso sobre a responsabilidade tem conteúdos ideológicos muito importantes que muitas vezes passam despercebidos e é hoje um ponto-chave no discurso político.
Esta medida, de Vieira da Silva, de que o desempregado tem que fazer uma procura activa de trabalho, e demonstrá-la, condição sem a qual fica sem subsídio de desemprego implica responsabilizar e culpar o desempregado pela sua própria situação e desculpabilizar o governo, os patrões e as suas políticas. Para além de tentar arranjar mais um motivo para deixar de pagar subsídio de desemprego. Objectivamente, não é por um desempregado muito procurar trabalho que o vai encontrar, na medida em que o que decide fundamentalmente a existência de postos de trabalho é alheio à posição da pessoa concreta do desempregado. Mais grave ainda, é que estas políticas abrem espaço político para posições reaccionárias como “trabalho há muito, as pessoas é que não querem trabalhar, querem emprego – não trabalho”.
Sendo verdade que o trabalho é uma mercadoria não é exactamente igual que o equilíbrio do mercado de trabalho se faça entre intervenientes (patrões e empregados) em situação de igualdade.
Num livro recente, que aborda o desemprego na política económica[26] pode ler-se: «A situação de “equilíbrio de mercado” entre os trabalhadores que oferecem trabalho e os empresários que procuram trabalho apresenta duas características fundamentais. É um “óptimo de Pareto”[27] e este óptimo assegura a maximização do lucro por parte dos empresários, a maximização da utilidade por parte dos trabalhadores e a igualdade entre a procura e a oferta globais de trabalho, sendo então um equilíbrio de pleno emprego. A existir desemprego, este é de origem comportamental, uma vez que depende do comportamento dos trabalhadores que se recusam a oferecer trabalho abaixo de um salário mínimo, o salário mínimo de reserva… o desemprego assim concebido é necessariamente um desemprego voluntário»[28].
Ou seja, o trabalhador que não aceitar oferecer a sua força de trabalho pelos valores que o patrão quer é responsável pelo seu próprio desemprego.
Na minha linha vem agora a questão do salário mínimo. No dizer de António Vitorino[29] Sócrates «pretende marcar politicamente mas permitindo ganhos de competitividade. O salário mínimo não pode ter um aumento muito significativo pois afecta a competitividade, sendo necessária a contenção salarial para criar emprego». Deste argumento se pode deduzir que se os trabalhadores lutam por salários mais elevados estão a criar – eles próprios – mais desemprego. Ora, ignora-se, dogmatiza-se, o intocável lucro.
Os conservadores, mais descarados que Vitorino, vão mais longe. «O salário mínimo pode gerar efeitos negativos sobre o nível do emprego uma vez que distorce a formação dos salários»[30] ou seja a livre formação dos salários necessitaria do fim do próprio salário mínimo, para que o “mercado pudesse funcionar livremente”.

9. O princípio do fim da segurança social.
Na polémica acerca da segurança social escreve Giddens: «O tipo de socialismo em que o Estado exercia um controlo geral da economia, regulando a procura enquanto o Estado-providência proporciona uma rede de segurança, morreu em 1989 com o socialismo real… a esquerda não pode opor-se à reforma da segurança social».
JCR reforça, «hoje em dia não é possível ao Estado, ou a qualquer ente público na sociedade política, actuar de modo providencial… ora a responsabilidade é a chave de toda a mudança… ela passa pelas parcerias com as famílias, a sociedade civil e o próprio indivíduo»[31] pois «nada é imutável e o bem estar comum das sociedades não pode depender só do Estado»[32] entenda-se parceria privada, responsabilização do indivíduo em formar a sua própria capitalização individual para a reforma e/ou introdução de um «salário negativo»[33] nos orçamentos familiares.
Compreende-se a dedução do argumento. Mas a premissa de que o Estado-providência morreu com o socialismo real não é verdade. Em consequência, a conclusão de que «a esquerda não se pode opor à reforma da segurança social»[34] também o não é. Argumentando em favor da taxa de substituição/sustentabilidade das pensões, Vieira da Silva acusa a esquerda europeia de «fechar os olhos à crise económica e financeira da segurança social… com resultados catastróficos». Vieira da Silva deve estar-se a referir às grandes manifestações e lutas contra as propostas dos governos para a segurança social. Como o Bloco de Esquerda demonstrou o problema passa, não pela retirada de direitos mas sim, pela introdução de novos financiamentos adequando-se o financiamento da segurança social à economia de hoje. Aqui social-liberais e conservadores mantêm, eles sim, o dogma de que o modelo de financiamento deve relacionar o número de trabalhadores no activo e na reforma - precisamente para livrar o capital de pagar.

10. Há espaço para um liberalismo de esquerda?
Os sociais-liberais, por vezes travestidos de liberais de esquerda estão assumindo o programa neo-liberal mas procuram revesti-lo de novas roupagens. E há espaço político para isso? Creio que não!
A pressão neo-liberal é simplesmente esmagadora. A política do PS assim o demonstra. Submetem-se à política da guerra, do capital, do centro do imperialismo global e procuram ser os melhores intérpretes da sua política. Um comentador perguntava à uns dias atrás: para que serve a esquerda?



[1] Ministro Vieira da Silva, Suplemento de Economia do DN, 14-08-2006.
[2] Rodrigues, José Conde, A política sem dogma, ensaios sobre o liberalismo de esquerda, Editora Occidentalis, Lisboa, 2006.
[3] Hume, David (Edimburgo, Escócia 1771 – 1776), consultar, por exemplo, www.wikipedia.org ou www.mundodosfilosofos.co.br. A sua obra mais importante foi o Tratado da Natureza Humana.
[4] Giddens, Anthony, LA REPUBBLICA, traduzido e publicado no COURRIER INTERNACIONAL, www.courrierinternacional.com.pt
[5] A política sem dogma, pág. 21.
[6] A política sem dogma, pág. 147.
[7] A política sem dogma, pág. 149.
[8] Artigo de JCR, Democracia e Igualdade, hoje, Revista Nova Cidadania, Abril/Junho 2006.
[9] Entrevista ao DN, 03-04-2006, a propósito do lançamento do seu livro.
[10] A política sem dogma, pág. 198.
[11] Artigo de JCR, Democracia e Igualdade, hoje.
[12] A política sem dogma, pág. 26.
[13] A política sem dogma, pág. 27.
[14] A política sem dogma, pág. 28 e 29
[15] A política sem dogma, pág. 30 a 33.
[16] Entrevista ao DN, 03-04-2006.
[17] A política sem dogma, pág. 34 e 35.
[18] A política sem dogma, pág. 157.
[19] Adjectivo profusamente escrito. Para tentar vincar um qualificativo que formate à partida a esquerda que se opõe ao neoliberalismo.
[20] Green, Philip, Equality and Democracy, 1998; citado por JCR.
[21] Entrevista ao DN, 03-04-2006.
[22] A política sem dogma, pág. 126.
[23] Bens sociais, aqui significa os serviços públicos que o Estado põe à disposição da população.
[24] Walzer, Michael, As esferas da Justiça, Editorial Presença, Lisboa, 1999; citado por JCR.
[25] Artigo de JCR, Democracia e Igualdade, hoje.
[26] Antunes, Margarida, O desemprego na política económica, Coimbra Editora, 2005, pág. 33.
[27] Vilfredo Pareto foi um economista liberal nomeado senador do Reino da Itália por Mussolini. O conceito “Óptimo de Pareto” significa que uma situação económica é óptima no sentido de Pareto se não for possível melhorar a situação, ou mais genericamente a utilidade, de um agente sem degradar a situação ou utilidade de qualquer outro agente económico. Numa estrutura ou modelo económico podem coexistir diversos óptimos de Pareto. Um óptimo de Pareto não tem necessariamente um aspecto socialmente benéfico ou aceitável. Por exemplo, a concentração de rendimento ou recursos num único agente pode ser óptima no sentido de Pareto.
[28] Antunes, Margarida, sobre a Abordagem neoclássica do mercado de trabalho, em O desemprego na política económica, Coimbra Editora, 2005, pág.
[29] No seu programa de comentários à RTP, 13-11-06
[30] Antunes, Margarida, sobre As determinantes institucionais do desemprego em O desemprego na política económica, Coimbra Editora, 2005, pág. 72.
[31] Idem.
[32] A política sem dogma, pág. 33.
[33] “Salário negativo”, expressão recentemente usada por Luís Fazenda para referir os custos na família com o desemprego.
[34] Entende-se o que o autor quer dizer: reforma aqui significa retirada de direitos.

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