sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O macaco e o trabalho, sobre as contribuições de Engels


por MICHEL SILVA
Graduando de História na Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC)
Copiado da Revista Electrónica Urutágua

Resumo: Pretende-se aqui analisar a atualidade das contribuições de Engels em seu estudo sobre a transição do macaco ao homem. Para tanto, partiremos tanto de algumas das contribuições dos teóricos da evolução biológica no século XIX quanto das descobertas das ciências naturais no século XX.
Palavras-chave: Engels; evolução humana; dialética da natureza.
Abstract: The intention of this article is to analyze the contemporaneousness of Engels' contribution throughout his assay about monkey to human being transition. Hence, at beginning, some contributions of 19th century biologic evolution's philosophers, as well as 20th century natural science discoveries will be discussed.
Key-words: Engels; human evolution; nature dialectic.


O tema da transição do macaco ao homem suscitou as mais diferentes interpretações desde o momento em que foi posto. Em um primeiro momento, a “origem simiesca” do homem, hoje praticamente consensual, precisou provar suas hipóteses contra as crenças religiosas: “a maravilhosa ‘alma do homem’ seria, segundo se afirma, uma ‘substância’ completamente especial, e muitos são os que consideram como impossível que se tenha desenvolvido historicamente a partir da ‘alma símia’” (HAECKEL, 1989, p. 21). Passado o século XIX, coube aos teóricos da evolução sofrerem as mais diferentes críticas – grande parte em decorrência de interpretações errôneas de suas hipóteses –, embora, de forma geral, suas descobertas tenham sido não apenas comprovadas como aprofundadas. (Cf. GOULD, 1999)

Todavia, uma questão bastante óbvia parece ter sido deixada de lado quando se procura refletir sobre a evolução humana (que Darwin preferia chamar de “descendência com modificação”).[1] Falamos aqui da questão do trabalho e seu papel no processo de evolução. Tal importância do trabalho pode ser facilmente observada quando analisamos todo o processo pelo qual passou o homem no que se refere à utilização das mais diversas ferramentas ao longo de sua história. Para nós, contudo, não basta enumerar as diferentes ferramentas que os homens utilizaram ou descrever suas distintas relações com o meio ambiente. É preciso ir mais fundo nessa questão, afinal o trabalho cumpriu papel central no processo de transição do macaco ao homem.

O trabalho

Para chegar a uma definição de trabalho, é preciso procurar os elementos que definem, ao longo da trajetória humana sobre o planeta, as relações estabelecidas entre o homem e o ambiente onde vive. Ora, “o trabalho só começa quando uma determinada atividade altera os materiais naturais, modificando sua forma original” (COGGIOLA, 2002, p. 182). Ou seja, pode-se definir o trabalho como o processo que realiza a mediação entre o ambiente e o homem, quando este põe em ação as forças de que seu corpo está dotado – braços, pernas, cabeça, mãos –, transformando os elementos que encontra disponíveis na natureza em produtos, suprindo assim suas necessidades, não importando “se elas se originam do estômago ou da fantasia” (MARX, 1985, p. 45).

O trabalho assim concebido – ação deliberada sobre o meio, caracterizada e dirigida pela inteligência e pela capacidade de abstração e formulação de conceitos – nada tem a ver com as atividades que realizam outros animais, como as abelhas ou as formigas. O homem, ao atuar “sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza” (MARX, 1985, p. 149). O trabalho humano não é ação sobre o meio realizada de forma instintiva ou mecânica, mas processo complexo de aprendizagem, onde o homem não se limita a repetir ações e processos, como os outros animais, mas desenvolve técnicas e tecnologia que lhe são úteis. Ou seja, o homem se diferencia pois cria suas próprias ferramentas e sua ação não se limita a modificar os materiais que encontra disponíveis na natureza:

No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade. (MARX, 1985, p. 149-50).

Desde os primeiros tempos da humanidade houve uma divisão do trabalho, que no início se dava em função de características fisiológicas, como gênero, idade, força física etc. Mas, à medida que o trabalho se diversificava e se tornavam mais complexas a técnica e a tecnologia, essa primeira divisão do trabalho foi sendo superada pela divisão entre o trabalho material e o trabalho intelectual. Passava a haver, quanto à função imediata do indivíduo no meio social, um trabalho realizado pela mente e um trabalho realizado pelas mãos, sendo o primeiro entendido como afastado da prática humana, um produto da consciência humana e não de um órgão. Cada indivíduo ficou limitado a esferas profissionais particulares, exclusivas, não devendo sair delas, sendo unicamente caçador, operário, professor ou administrador. Com essa divisão, o trabalho e seus produtos passaram a ser, qualitativa e quantitativamente, distribuídos de forma desigual. (MARX; ENGELS, 1996, p. 44-8).

Engels e o macaco

Embora mais conhecido como um dos pioneiros do materialismo histórico, Engels dedicou parte de sua vida intelectual ao estudo das chamadas “ciências naturais”. Em um desses textos, Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem, publicado postumamente, Engels afirma que o trabalho é “condição básica e fundamental de toda a vida humana”, sendo possível afirmar que, em certo sentido, “o trabalho criou o próprio homem (ENGELS, s.d., p. 269). No contexto da época, tais afirmações eram bastante polêmicas, na medida em que o conjunto dos cientistas – e isso inclui os teóricos da evolução biológica – estavam marcados pela filosofia idealista, não considerando a importância do trabalho no processo evolutivo do homem.

Curiosamente, embora pouco conhecido – e nada estudado – esse pequeno e pretensioso ensaio de Engels, cujo objetivo era defender uma interpretação materialista da evolução humana – e não descrever um conjunto de conclusões acabadas e empiricamente comprovadas –, teve muitas de suas hipóteses corroboradas pelas descobertas das ciências biológicas ao longo do século XX. Nele, Engels apresenta as transformações históricas na relação entre a humanidade e o ambiente, sua intervenção sobre o meio e o processo de construção da sociedade. Engels procura demonstrar como o trabalho e a fabricação de diferentes instrumentos constituiu-se em fator fundamental na transição do macaco ao homem, num processo lento que inclui, entre outros elementos, o desenvolvimento de certas características físicas, como a mão, a fala e o próprio cérebro.

Para Engels, o fato de um grupo de macacos, há alguns milhões de anos, ter deixado de necessitar das mãos para caminhar, passando a adotar cada vez mais uma posição ereta e deixando as mãos livres para executar as mais variadas funções, foi o “passo decisivo para a transição do macaco em homem”. Usava-se antes as mãos apenas para tarefas como “recolher e sustentar alimentos (...) construir ninhos nas árvores (...) construir telhados entre os ramos (...) empunhar garrotes, com os quais se defendem se seus inimigos, ou para os bombardear com frutos e pedras” (ENGELS, s.d., p. 269-70). Tendo descido das árvores e fazendo uso da postura ereta, nossos ancestrais teriam aos poucos adaptado as mãos a novas tarefas. Embora nesse período de transição as funções que a mão cumpria fossem bastante simples, ela adquiriu ao longo do tempo mais destreza e habilidade, transmitindo de geração em geração essa flexibilidade adquirida.

Engels vê a mão como produto do trabalho. O longo processo decorrido até chegarmos à mão que temos hoje foi marcado pela adaptação a novas funções e “pela transmissão hereditária do aperfeiçoamento especial assim adquirido pelos ossos (...) pela aplicação sempre renovada dessas habilidades transmitidas a funções novas e cada vez mais complexas” (ENGELS, s.d., p. 270). Também, além da questão da hereditariedade, Engels dialoga com Darwin quando corrobora a lei de “correlação de crescimento”, segundo a qual “certas formas das diferentes partes dos seres orgânicos sempre estão ligadas a determinadas formas de outras partes, que aparentemente não tem nenhuma relação com a primeira” (ENGELS, s.d., p. 271). Ou seja, como não é parte isolado do organismo humano, a mão é beneficiada, de alguma forma, pelo que beneficia todo o corpo. “O aperfeiçoamento gradual da mão do homem e a adaptação concomitante dos pés ao andar em posição ereta exercem indubitavelmente, em virtude da referida correlação, certas influências sobre outras partes” (ENGELS, s.d., p. 271).

Também destaca Engels a fala como característica essencial da evolução do homem, pois, dado o fato de os humanos viverem coletivamente, de precisarem se comunicar e comunicar o que aprendiam e observavam, tiveram a necessidade de desenvolver uma linguagem articulada que pudesse expressar idéias, conceitos, signos etc. Em função do progressivo domínio da natureza e do desenvolvimento de novas técnicas, o homem aos poucos foi descobrindo nos objetos propriedades que até então não conhecia, ao passo que

o desenvolvimento do trabalho, ao multiplicar os casos de ajuda mútua e de atividade conjunta, e ao mostrar assim as vantagens dessa atividade conjunta para cada indivíduo, tinha que contribuir forçosamente para agrupar ainda mais os membros da sociedade. (ENGELS, s.d., p. 271).

Nisso residiria a explicação para o surgimento da linguagem, no processo onde o organismo sofreria várias modificações:

a laringe pouco desenvolvida do macaco foi-se transformando, lenta mas firmemente, mediante modulações que produziam por sua vez modulações mais perfeitas, enquanto os órgãos da boca aprendiam pouco a pouco a pronunciar um som articulado após o outro. (ENGELS, s.d., p. 271).

Engels afirma que o trabalho e a palavra articulada “foram os dois estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se transformando gradualmente em cérebro humano” (ENGELS, s.d., p. 272). Com o desenvolvimento do cérebro, desenvolvem-se também os sentidos, instrumentos de contato mais imediato com o meio.

Da mesma forma que o desenvolvimento gradual da linguagem está necessariamente acompanhado do correspondente aperfeiçoamento do órgão do ouvido, assim também o desenvolvimento geral do cérebro está ligado ao aperfeiçoamento de todos os órgãos dos sentidos. (ENGELS, s.d., p. 272).

Todo esse desenvolvimento – do trabalho, da linguagem, da capacidade de abstração, dos sentidos –, “em grau diverso e em diferentes sentidos entre diferentes povos e as diferentes épocas” (ENGELS, s.d., p. 273), foi o fator determinante para que o homem e a própria sociedade também se desenvolvessem.

Engels o Homo erectus

Se olharmos o que se conhece hoje em termos de evolução humana, temos que o Homo erectus, que viveu há cerca de dois milhões de anos, é o ancestral mais antigo do Homo sapiens, o humano moderno. Isso não significa dizer que começa no Homo erectus a história da evolução humana, mas é impossível tirar dele um papel destacável:

O Homo erectus foi a primeira espécie humana a utilizar o fogo; a primeira a incluir a caça como parte significativa de sua subsistência; a primeira capaz de correr como os humanos modernos o fazem; a primeira a fabricar instrumentos de pedra de acordo com um padrão definido; a primeira a estender seus domínios para além da África. (LEAKEY, 1997, p. 13).

Sabe-se que houve um grande número de espécies que evoluíram a partir do macaco, todas bípedes embora com fortes características simiescas: cérebro pequeno, dentes molares grandes, maxilares protuberantes e um modo de subsistência semelhante ao do macaco. Sua alimentação era essencialmente vegetariana. Pouco se sabe de como viveram, como morreram, e mesmo quantas espécies diferentes foram. Sabe-se apenas que, entre sete e 2 milhões de anos atrás, uma grande quantidade de diferentes espécies de macacos bípedes evoluiu, adaptando-se a diferentes condições ambientais. E que essas espécies se assemelhavam com os humanos apenas no modo de andar.

Como a sinalizar a origem do gênero Homo, “em meio a essa proliferação de espécies humanas houve uma, entre 3 e 2 milhões de anos atrás, que desenvolveu um cérebro significativamente maior” (LEAKEY, 1997, p. 14). Esses ancestrais humanos começaram a produzir suas primeiras ferramentas, batendo duas pedras uma contra a outra, o que propiciou a eles, entre outras coisas, o acesso a alimentos que até então lhes eram negados. “Os primeiros conjuntos de artefatos encontrados têm 2,5 milhões de anos de idade; eles incluem, além de lascas, implementos maiores tais como cutelos, raspadores e várias pedras poliédricas” (LEAKEY, 1997, p. 46). Nesse sentido, temos que a história da evolução humana está marcada, conforme assinalava Engels, pela fabricação de ferramentas utilizadas no trabalho.

Há também a questão da alimentação. Engels apontava que a fabricação de ferramentas próprias para a realização da caça e da pesca está relacionada à passagem de uma alimentação exclusivamente vegetariana para uma alimentação mista. Essas novas características da alimentação teriam oferecido ao organismo ingredientes essenciais para seu metabolismo. Tal influência teria se manifestado principalmente no cérebro, “que recebeu assim em quantidade muito maior do que antes as substâncias necessárias à sua alimentação e desenvolvimento” (ENGELS, s.d., p. 274). Esses novos hábitos alimentares demandaram o uso do fogo, que auxiliava no processo de digestão pelo cozimento dos alimentos e na domesticação de animais, aumentando, assim, suas reservas de carne.

Sabemos, a partir das descobertas arqueológicas do século XX, que o aumento do cérebro e as mudanças nos dentes estão vinculados à passagem de uma dieta exclusivamente vegetal para uma dieta que incluía também carne. Partindo da compreensão de que a carne é uma fonte concentrada de calorias, proteínas e gordura, fica fácil entender que “somente pela adição de uma proporção significativa de carne à sua dieta poderia o Homo primitivo ter ‘custeado’ a construção de um cérebro maior em tamanho” (LEAKEY, 1997, p. 62). Também se percebe, pelas descobertas levantadas pela arqueologia, que o acréscimo de carne à dieta humana provocou mudanças na própria organização da sociedade, uma nova divisão do trabalho, o uso de novas ferramentas e do fogo etc.

O homem teve um grande número de antepassados, alguns distantes, outros mais próximos, não tendo evoluído de forma linear do macaco até nós. Quando falamos em evolução, falamos antes de mais nada em adaptação local, que, no caso do homem, não se dá apenas pela modificação biológica com descendências, mas tem no trabalho um mecanismo que permite tentar diminuir as conseqüência negativas das intempéries do meio ou suprir necessidades vitais, como comer ou se proteger do frio.

Houve várias outras espécies, como as australopitecíneas, contemporâneas aos ancestrais humanos, que compartilhavam características que viriam a aparecer no Homo sapiens, do que se depreende que a “família” humana, entre “primos” e “irmãos”, é grande e diversa. E que o Homo sapiens não é a última parada da evolução humana.

As “seqüências” evolutivas não são degraus de uma escada, mas sim a reconstrução em retrospecto de uma trilha labiríntica, ramo por ramo, da base do arbusto à linhagem, sobrevivendo agora no topo. (...) O Homo sapiens não é produto de uma escada que desde o início sobe diretamente em direção ao nosso estado atual. Constituímos tão-somente a ramificação sobrevivente de um arbusto outrora exuberante. (GOULD, 1999, p. 54-5).

Se considerarmos que havia contemporâneos dos ancestrais humanos, talvez seja possível afirmar que Engels errou ao defender a hipótese de que foi de um único grupo de macacos adaptados que surgiu o homem. Todavia, é preciso ter em mente que

a evolução normalmente se processa por meio de uma “especiação” – uma ramificação de uma linhagem a partir do tronco parental – e não por uma mudança constante e vagarosa desses grande troncos. Episódios repetidos de especiação produzem um arbusto. (GOULD, 1999, p. 54).

O Homo erectus não surgiu numa explosão biológica, mas é produto de um longo processo de evolução. É um arbusto, não um degrau de escada. Da mesma forma, as espécies dele oriundas apresentam outras especiações e assim sucessivamente. Ora, Engels não estava preocupado em definir um grupo e sua localização espacial e temporal, mas em expor o processo de evolução humana. Seu texto não vai em busca de uma única origem humana, mas procura defender a hipótese de que foi o trabalho – que, neste caso, apontamos como o responsável pelas diversas especiações – o fator que diferenciou a adaptação humana da adaptação de outros animais. Se todos os ancestrais humanos e seus contemporâneos, de diferentes regiões e épocas, têm características próprias, é óbvio que isso se deu em função das diferentes formas encontradas para se adaptar ao meio. Se havia diferentes formas de adaptação ao meio, é porque havia diferentes formas de trabalho. Então temos, retomando Engels, que não é apenas em função de uma determinação biológica que o homem se transforma, mas também pela sua intervenção, pelo trabalho, sobre a natureza.

Engels hoje

Temos, portanto, que várias das hipóteses de Engels foram comprovadas pelas descobertas de novos fósseis e pelo desenvolvimento das ciências biológicas. Diante desse fato, não é possível deixar de ficar impressionado por elas terem sido elaboradas sem o conhecimento de fósseis descobertos apenas no século XX. Se coube a Engels ser tão contemporâneo do nosso século, foi justamente pela escolha do método de análise – tomando como ponto de partida as contribuições dos teóricos da evolução humana do século XIX, em especial Darwin[2] e Haeckel –, ao procurar expor uma formulação materialista e dialética das ciências naturais. Foi mais além, neste e em outros escritos, polemizando com a forma idealista de fazer ciência, hegemônica na época, e que ainda hoje persiste. Parecia que o cérebro era o grande responsável pelo mundo que emergia das mãos humanas.

Em seu contato com o meio ambiente, o ser humano aprendeu a dominá-lo, ao longo de sua existência, desenvolvendo certas habilidades como a caça e a pesca, a agricultura e a tecelagem. O trabalho humano desenvolveu não apenas uma grande diversidade de técnicas e ferramentas como diferentes formas de organização das sociedades. Foi a cooperação entre mãos, os órgãos da linguagem e o cérebro que produziu as artes e a política, a cerâmica e as navegações, o direito e as religiões, a escravidão e o capitalismo etc. “Frente a todas essas criações, que se manifestavam em primeiro lugar como produtos do cérebro e pareciam dominar as sociedades humanas, as produções mais modestas, fruto do trabalho da mão, ficaram relegadas a segundo plano” (ENGELS, s.d., p. 275). Nesse sentido, o grande progresso técnico pelo qual passou a humanidade foi atribuído ao desenvolvimento e à atividade do cérebro. Os homens se acostumaram a explicar tudo como obra do cérebro. “Foi assim que, com o transcurso do tempo, surgiu essa concepção idealista do mundo que dominou o cérebro dos homens (...) e continua ainda a dominá-lo” (ENGELS, s.d., p. 275). Para Engels, nem mesmo os mais materialistas dos teóricos da evolução humana, como Darwin, conseguiam chegar a uma idéia precisa sobre a origem do homem em função de não ver a importância desempenhada pelo trabalho no processo de evolução.

Para Gould (1999, p. 210), “a importância do ensaio de Engels está não nas suas conclusões substanciais, mas sim na sua aguçada análise política do motivo pelo qual a ciência ocidental se achava tão apegada à asserção a priori da primazia cerebral”. O argumento de Gould resgata a importância da posição de Engels de crítica à separação entre a mão e a cabeça, a prática e a abstração, tanto na sociedade como nas ciências. Concordamos com Gould, ao trazer para nossos dias tais polêmicas, mas entendemos que a obra de Engels não se limita apenas a um caráter analítico: seu exemplo é de prática política, procurando combater, no terreno da luta de classes, a compreensão de superioridade do cérebro, que relega ao trabalho com as mãos um papel menor, numa sociedade onde o poder está concentrado nas mãos de uma elite “pensante”.

O trabalho hoje

Entendemos que é preciso, no âmbito das ciências humanas, restabelecer a centralidade da categoria trabalho para entender a vida humana, retomando a compreensão do trabalho como ação que “produz a natureza humana na mesma medida em que a delimita e a diferencia da natureza puramente animal, através de uma apropriação específica do próprio mundo natural” (COGGIOLA, 2002, p. 183). Se ainda hoje precisamos, como Gould na década de 1970, resgatar Engels e trazer à tona tal polêmica, é sintoma de que, em essência, pouca coisa mudou desde o século XIX.

Na sociedade em que Engels viveu, como na nossa, o trabalho com as mãos é ato de aviltamento do ser humano, cabendo sua realização a seres “inferiores”. Um outro tipo de trabalho, realizado “pela cabeça”, ganha papel de grandiosidade, sendo muitas vezes não considerado trabalho, esquecendo-se inclusive que depende de um órgão do corpo humano, o cérebro. Da mesma forma, esquece-se que não há trabalho puramente cerebral ou puramente manual, sendo a prática uma parte constitutiva do aprendizado (afinal não se aprende apenas observando ou refletindo sobre os processos). Esquece-se também que aqueles trabalhadores supostamente menos importantes, os que trabalham com as mãos, são os que produzem as riquezas materiais que servem para suprir as necessidades de toda a humanidade. Se negamos ao trabalho sua importância fundamental, negamos nossa própria história, a história do animal que chegou a ser o que é, a tornar real um mundo de sonhos e maravilhas, pelo trabalho.

Referências bibliográficas:
COGGIOLA, Osvaldo. O capital contra a história: gênese e estrutura da crise contemporânea. São Paulo: Xamã; Edições Pulsar, 2002.
DARWIN, Charles. A origem do homem e a seleção sexual. São Paulo: HEMUS, 1974.
ENGELS, Friedrich. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem [1876]. In: ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, s.d., v. II.
ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã: (I-Feuerbach). 10ª ed. São Paulo: Hucitec, 1996.
GOULD, Stephen Jay. Darwin e os grandes enigmas da vida. 2ª ed. São Paulo: M. Fontes, 1999.
HAECKEL, Ernst. A origem do homem. 2ª ed. São Paulo: Global, 1989.
LEAKEY, Richard. A origem da espécie humana. Rio de Janeiro. Rocco, 1997.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1985, v. I, t. 1.

[1] Segundo Gould (1999, p. 25-9), outros teóricos da evolução humana também não usaram em suas principais obras a palavra “evolução”: o francês Lamarck preferia “transformismo” e o alemão Haeckel “teoria das transmutações”.
2] Em Gould (1999) é também analisada a recepção das obras de Darwin por Marx e Engels e seu impacto sobre os fundadores do materialismo histórico. Sobre a compreensão de Darwin quanto a algumas das discussões apresentadas neste artigo, como a importância das mãos e a fabricação de ferramentas, deve-se conferir principalmente Darwin (1974, p. 63-70).

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